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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

60 anos de: A Love Supreme - John Coltrane (1965)

                       

Com certeza que A Love Supreme é um dos álbuns mais brilhantes da história do jazz instrumental e ao mesmo tempo uma das obras mais espiritualmente profundas já criadas. Não se trata apenas de um marco na carreira de Coltrane, o disco engloba o que é o reflexo de uma transformação pessoal, algo como se em determinado momento, artista e música se fundissem e se tornasse um só. 

Coltrane viveu um período de excelência em termos de crescimento musical e espiritual justamente nos anos que antecederam o lançamento de A Love Supreme. Embora tratasse de um nome conceituado no mundo do jazz instrumental desde a década de 1950, foi a partir de 1960 – época em que formou o seu próprio quarteto -, que Coltrane mergulhou ainda mais na ideia de desenvolver uma identidade própria dentro do universo do jazz. Foi durante essa fase nova que ele expandiu sua abordagem ao saxofone e ao jazz modal, além de buscar novas ideias que lhe trariam sonoridades inovadoras que lhe abririam caminhos para uma expressão artística cada vez mais pessoal. 

Vale destacar também que seu interesse pela espiritualidade se tornou cada vez mais evidente ao longo dos anos. Em 1957, período em que já se encontrava completamente livre das drogas e do álcool, decidiu iniciar uma caminhada de fé enquanto buscava uma maior compreensão sobre a existência e o propósito da vida. A partir dessa visão, começou a estudar inúmeras tradições religiosas. Neste registro, o mestre do saxofone entrega sua devoção ao jazz modal ao explorá-lo com intensidade emocional extrema e um significado espiritual profundo. 

Ao longo de 1964 Coltrane buscava de maneira incansável novas possibilidades em que ele pudesse ampliar os limites do jazz. Durante esse período ele experimentou novas abordagens no saxofone e desenvolveu ainda mais o uso de escalas modais, além de aprofundar sua técnica conhecida como sheets of sound (camadas sonoras). Esse conceito caracterizado por frases musicais extremamente rápidas, sobrepostas e densas, criava uma sensação de fluxo contínuo e quase hipnótico, algo completamente novo dentro do que era conhecido como improviso jazzístico. Para Coltrane a música não era apenas arte, também era um meio de conexão entre o mundo humano e um mundo capaz de transmitir sentimentos de devoção. Inclusive, essa visão se manifesta de forma clara e direta na dedicatória que escreveu no encarte do disco, revelando então a sua intenção sincera por trás da obra: Neste álbum, eu humildemente pretendo oferecer algo que tenha significado espiritual. Toda glória a Deus.

Paralelamente a tudo isso o seu interesse por outras culturas musicais também crescia. Ele se aprofundava no estudo da música indiana, tendo ficado fascinado pelos ragas e pela ideia de improvisação como um meio de transcendência espiritual. Além disso, ele também absorvia a influência dos ritmos africanos, especialmente as estruturas com polirritmias e que passaram a desempenhar um papel fundamental em sua abordagem rítmica. Essas influências, combinadas à sua evolução pessoal e artística prepararam o terreno bastante rico para a concepção de A Love Supreme.

Esse período também foi marcado por uma dedicação quase obsessiva ao estudo e à prática musical. Segundo músicos que conviviam com Coltrane, era relatado que ele passava incalculáveis horas praticando sem fazer qualquer tipo de pausa, completamente imerso em sua busca por um som cada vez mais profundo e expressivo. Para ele o saxofone não era apenas um instrumento, mas uma extensão da sua espiritualidade. Inclusive, também existem relatos de que Coltrane frequentemente tocava enquanto rezava ou meditava, pois essa era uma forma de manter sua prática musical e o seu crescimento interior.

Alice Coltrane, sua esposa na época, também comentou sobre essa profunda conexão entre música e fé, lembrando que ele frequentemente falava sobre sua visão espiritual da arte sonora. Para Coltrane cada nota e cada melodia, além de cada improviso, tudo tinha o potencial de expressar aspectos do divino e funcionava muito bem como uma ponte para dimensões superiores da existência. Essa crença não apenas guiava sua abordagem musical, mas também moldava sua filosofia de vida. 

É fato que A Love Supreme não foi apenas um álbum, mas também uma declaração poderosa de fé. Embora seus discos anteriores já apresentassem uma inclinação para o jazz modal e a experimentação, aqui tudo construído com um propósito muito mais claro e profundo. Coltrane não apenas explorou novas fronteiras musicais, ele também usou sua arte como um meio de expressar sua gratidão a Deus. Cada nota e cada frase foi composta e tocada com a intenção de transmitir um sentido de reverência que serviu como um convite para os ouvintes embarcarem em uma jornada sonora de conexão com o divino. 

Durante a gravação do disco, Coltrane se preparou de maneira quase ritualística, como se cada sessão fosse uma extensão de sua prática espiritual. O baterista Elvin Jones disse na época que o saxofonista estava em um estado quase meditativo enquanto tocava. Antes de cada sessão, se isolava em seu quarto e passava um tempo rezando e meditando, buscando se conectar com algo maior, uma força que pudesse guiá-lo em sua performance. Então quando entrava no estúdio para gravar, sua energia e concentração eram tão intensas que parecia ir além do ambiente físico e criava uma atmosfera única. 

O quarteto de John Coltrane em A Love Supreme era composto por músicos excepcionais que apenas elevaram ainda mais a ideia de Coltrane para o disco. McCoy Tyner no piano com sua abordagem modal e poderosa criava uma base harmônica sólida e expansiva. Jimmy Garrison no contrabaixo era fundamental para estabelecer o ritmo por meio de linhas meditativas que reforçavam a espiritualidade da música. O baterista Elvin Jones trouxe uma intensidade de polirritmias e uma energia dinâmica que criou uma interação constante com Coltrane e contribuiu para o fluxo contínuo do disco. 

Juntos os quatro músicos formaram uma unidade quase telepática e um coletivo onde cada um se apoiava no outro para explorar inúmeras possibilidades sônicas. A dinâmica entre eles era tão profunda que a interação parecia ultrapassar o simples ato de tocar juntos. A natureza modular da música de Coltrane e suas escalas e harmonias abertas permitia que cada músico tivesse a liberdade para improvisar e criar uma sensação de constante descoberta e evolução. Contudo, o que realmente destacava esse quarteto era a coesão única que mantinha todas as ideias musicais unidas, permitindo que cada improvisação fluísse de maneira orgânica e sem perder a essência da jornada musical como um todo.

“A Love Supreme Pt I – Acknowledgement” inicia o disco com um baixo marcante em um padrão hipnótico que funciona como uma espécie de mantra musical e que estabelece desde o início o caráter meditativo do álbum. Então que Coltrane entra com um improviso fervoroso sobre essa base constante e explora a melodia com intensidade crescente que soa quase como uma oração musical. É possível sentir que o seu saxofone parece estar em uma espécie de busca interior, variando dessa forma entre momentos de serenidade e explosões emocionais. 

A melodia se desenvolve de uma forma que mais parece um ritual, onde a sensação de uma oração musical é eminente com cada nota carregando um peso espiritual e emocional. Esse equilíbrio entre contemplação e êxtase é o que torna essa uma introdução tão poderosa para o disco e prepara o ouvinte para uma experiência sonora imersiva e profundamente significativa. Mas ainda vale destacar que na parte final da peça, Coltrane surpreende a todos introduzindo algo completamente inesperado, ele canta – algo raro em sua carreira - as palavras “A Love Supreme” repetidamente, o que reforça ainda mais a natureza devocional do disco. 

"A Love Supreme Pt II – Resolution", se apresenta com um caráter mais enérgico e que carrega uma tensão rítmica e força expressiva. Se a sonoridade da peça de abertura foi mais meditativa, aqui as coisas soam mais marcantes e poderosas ao conduzir o ouvinte a um novo estágio da jornada espiritual de Coltrane. O pianista McCoy Tyner assume um papel essencial ao adicionar acordes intensos e percussivos que combinam perfeitamente com a pulsação rítmica precisa da música, criando assim, uma base harmônica robusta. Seu piano não apenas sustenta a estrutura da peça, mas também adiciona camadas de dramaticidade.

Enquanto isso, Elvin Jones transforma sua bateria em uma verdadeira tempestade rítmica que preenche o espaço com batidas dinâmicas e que impulsionam a música com uma sensação de movimento constante. Sobre essa estrutura vibrante, Coltrane se entrega a um solo apaixonado e visceral que explora variações modais com uma profundidade impressionante. Cada frase de seu saxofone carrega uma carga emocional intensa e que reflete sua devoção e entrega espiritual. 

“A Love Supreme Pt III - Pursuance" inicia com um solo destruidor de bateria repleto de variações rítmicas e que prepara o terreno para uma das performances mais eletrizantes do álbum. Diferente dos movimentos anteriores em que a espiritualidade se manifesta ora de forma contemplativa e ora em expressões intensas de devoção, o que predomina aqui é uma sensação predominante de estar no meio de uma jornada frenética rumo à iluminação e à compreensão divina. As teclas entregam acordes expressivos e que sustentam a estrutura harmônica enquanto Coltrane toma a frente com um solo incendiário. Seu saxofone se torna um canal de expressão emocional extrema e navega com uma fluidez impressionante entre registros altos e baixos, explorando toda a extensão do instrumento. A cada frase a peça parece se expandir como se estivesse tentando romper os limites do físico e do espiritual.

Esse caráter quase maníaco da improvisação encontrado em “Pùrsuance” reflete em uma espécie de sede insaciável de conhecimento e soa como se Coltrane estivesse usando cada nota e cada frase para expressar sua busca interior por algo maior, mais ou menos como se o seu saxofone se tornasse um veículo de questionamento e descoberta.

A interação entre os músicos atinge aqui um nível de coesão impressionante, onde cada um contribui para a construção de um fluxo sonoro que nunca se acomoda, muito pelo contrário, ele sempre parece estar avançando e sempre explorando novas possibilidades. O resultado é um dos momentos mais virtuosos e arrebatadores do disco, uma verdadeira catarse sonora que transcende a música em si e se transforma em um verdadeiro clamor espiritual.

"A Love Supreme Pt IV – Psalm" finaliza o disco de uma maneira sublime por meio de uma peça que se apresenta como uma espécie de oração sem palavras, onde cada nota do saxofone de Coltrane ressoa como um verso recitado com devoção. Diferente dos movimentos anteriores, aqui não há um pulso rítmico fixo ou uma estrutura convencional de jazz. Em vez disso, a música flui de maneira mais livre e introspectiva, como se o músico estivesse canalizando diretamente sua fé por meio do instrumento.

O aspecto mais fascinante desse movimento é que ele segue a cadência e a entonação de um poema que o próprio Coltrane escreveu e incluiu no encarte do álbum. Embora não seja falado, o poema pode ser "ouvido" através das frases melódicas do saxofonista que possuem a capacidade de imitar a inflexão natural da voz ao declamar um texto sagrado. Essa abordagem confere à peça um caráter profundamente contemplativo, com a ausência de ritmo fixo permitindo que a melodia flutue sem amarras e soe carregada de emoção. 

O impacto de A Love Supreme foi algo que ultrapassou as fronteiras que cercavam o jazz e se tornou também um marco não apenas musical, mas espiritual e cultural. Sua recepção foi extremamente positiva e consolidou Coltrane como um músico que elevou o seu som a um nível de expressão mística e filosófica nunca visto. O sucesso comercial do disco também foi algo impressionante, principalmente em se tratando de uma obra tão ousada e experimental. A Love Supreme passou das quinhentas mil cópias vendidas nos primeiros anos e garantiu seu status de clássico instantâneo. A crítica o reconheceu como um dos discos mais inovadores da história e elogiou sua fusão de improvisação livre e estruturas modais, além da sua profundidade emocional.

Sua influência se espalhou por diversos outros gêneros musicais, como no rock em que artistas como Carlos Santana e The Doors beberam assumidamente na fonte da espiritualidade e da intensidade do álbum. No hip-hop a sua abordagem rítmica e sua liberdade estrutural inspiraram produtores e músicos que buscavam pensar fora da caixinha. Na música eletrônica a sua exploração de camadas sonoras e mantras repetitivos ecoaram nas atmosferas criadas por artistas contemporâneos. A dimensão espiritual da obra fez com que ela fosse adotada até mesmo por diversos movimentos religiosos e filosóficos. Muitos enxergam o disco como uma espécie de oração universal e que é acessível a qualquer um que busque uma experiência extranatural por intermédio da música. 

A Love Supreme é uma jornada sonora que reflete a entrega total de Coltrane à sua arte e à sua busca interior, além de sua fé. Cada acorde e cada improvisação é enxarcado de uma devoção profunda e que faz parecer que ele está se comunicando diretamente com o divino por meio de seu saxofone. A complexidade harmônica e a liberdade expressiva de sua improvisação não são apenas marcas de um virtuoso, mas a manifestação de uma jornada espiritual que é tanto pessoal quanto universal.

Até hoje, A Love Supreme permanece como um dos maiores legados da história do jazz, inclusive, não sendo apenas um marco na evolução do gênero, mas também um testemunho eterno da jornada de Coltrane. Sua busca sempre foi por algo além da música, por uma conexão profunda e significativa com o cosmos e que pudesse ressoar em cada nota tocada. Uma obra-prima que continua a inspirar gerações, enquanto as convida à uma jornada interior de descoberta e transcendência.

NOTA: 10/10

Gênero: Jazz Espiritual

Faixas:

1. A Love Supreme Pt I – Acknowledgement - 7:42
2. A Love Supreme Pt II – Resolution - 7:17
3. A Love Supreme Pt III - Pursuance - 10:42
4. A Love Supreme Pt IV – Psalm - 7:02

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

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