Translate

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

60 anos de: A Love Supreme - John Coltrane (1965)

                       

Com certeza que A Love Supreme é um dos álbuns mais brilhantes da história do jazz instrumental e ao mesmo tempo uma das obras mais espiritualmente profundas já criadas. Não se trata apenas de um marco na carreira de Coltrane, o disco engloba o que é o reflexo de uma transformação pessoal, algo como se em determinado momento, artista e música se fundissem e se tornasse um só. 

Coltrane viveu um período de excelência em termos de crescimento musical e espiritual justamente nos anos que antecederam o lançamento de A Love Supreme. Embora tratasse de um nome conceituado no mundo do jazz instrumental desde a década de 1950, foi a partir de 1960 – época em que formou o seu próprio quarteto -, que Coltrane mergulhou ainda mais na ideia de desenvolver uma identidade própria dentro do universo do jazz. Foi durante essa fase nova que ele expandiu sua abordagem ao saxofone e ao jazz modal, além de buscar novas ideias que lhe trariam sonoridades inovadoras que lhe abririam caminhos para uma expressão artística cada vez mais pessoal. 

Vale destacar também que seu interesse pela espiritualidade se tornou cada vez mais evidente ao longo dos anos. Em 1957, período em que já se encontrava completamente livre das drogas e do álcool, decidiu iniciar uma caminhada de fé enquanto buscava uma maior compreensão sobre a existência e o propósito da vida. A partir dessa visão, começou a estudar inúmeras tradições religiosas. Neste registro, o mestre do saxofone entrega sua devoção ao jazz modal ao explorá-lo com intensidade emocional extrema e um significado espiritual profundo. 

Ao longo de 1964 Coltrane buscava de maneira incansável novas possibilidades em que ele pudesse ampliar os limites do jazz. Durante esse período ele experimentou novas abordagens no saxofone e desenvolveu ainda mais o uso de escalas modais, além de aprofundar sua técnica conhecida como sheets of sound (camadas sonoras). Esse conceito caracterizado por frases musicais extremamente rápidas, sobrepostas e densas, criava uma sensação de fluxo contínuo e quase hipnótico, algo completamente novo dentro do que era conhecido como improviso jazzístico. Para Coltrane a música não era apenas arte, também era um meio de conexão entre o mundo humano e um mundo capaz de transmitir sentimentos de devoção. Inclusive, essa visão se manifesta de forma clara e direta na dedicatória que escreveu no encarte do disco, revelando então a sua intenção sincera por trás da obra: Neste álbum, eu humildemente pretendo oferecer algo que tenha significado espiritual. Toda glória a Deus.

Paralelamente a tudo isso o seu interesse por outras culturas musicais também crescia. Ele se aprofundava no estudo da música indiana, tendo ficado fascinado pelos ragas e pela ideia de improvisação como um meio de transcendência espiritual. Além disso, ele também absorvia a influência dos ritmos africanos, especialmente as estruturas com polirritmias e que passaram a desempenhar um papel fundamental em sua abordagem rítmica. Essas influências, combinadas à sua evolução pessoal e artística prepararam o terreno bastante rico para a concepção de A Love Supreme.

Esse período também foi marcado por uma dedicação quase obsessiva ao estudo e à prática musical. Segundo músicos que conviviam com Coltrane, era relatado que ele passava incalculáveis horas praticando sem fazer qualquer tipo de pausa, completamente imerso em sua busca por um som cada vez mais profundo e expressivo. Para ele o saxofone não era apenas um instrumento, mas uma extensão da sua espiritualidade. Inclusive, também existem relatos de que Coltrane frequentemente tocava enquanto rezava ou meditava, pois essa era uma forma de manter sua prática musical e o seu crescimento interior.

Alice Coltrane, sua esposa na época, também comentou sobre essa profunda conexão entre música e fé, lembrando que ele frequentemente falava sobre sua visão espiritual da arte sonora. Para Coltrane cada nota e cada melodia, além de cada improviso, tudo tinha o potencial de expressar aspectos do divino e funcionava muito bem como uma ponte para dimensões superiores da existência. Essa crença não apenas guiava sua abordagem musical, mas também moldava sua filosofia de vida. 

É fato que A Love Supreme não foi apenas um álbum, mas também uma declaração poderosa de fé. Embora seus discos anteriores já apresentassem uma inclinação para o jazz modal e a experimentação, aqui tudo construído com um propósito muito mais claro e profundo. Coltrane não apenas explorou novas fronteiras musicais, ele também usou sua arte como um meio de expressar sua gratidão a Deus. Cada nota e cada frase foi composta e tocada com a intenção de transmitir um sentido de reverência que serviu como um convite para os ouvintes embarcarem em uma jornada sonora de conexão com o divino. 

Durante a gravação do disco, Coltrane se preparou de maneira quase ritualística, como se cada sessão fosse uma extensão de sua prática espiritual. O baterista Elvin Jones disse na época que o saxofonista estava em um estado quase meditativo enquanto tocava. Antes de cada sessão, se isolava em seu quarto e passava um tempo rezando e meditando, buscando se conectar com algo maior, uma força que pudesse guiá-lo em sua performance. Então quando entrava no estúdio para gravar, sua energia e concentração eram tão intensas que parecia ir além do ambiente físico e criava uma atmosfera única. 

O quarteto de John Coltrane em A Love Supreme era composto por músicos excepcionais que apenas elevaram ainda mais a ideia de Coltrane para o disco. McCoy Tyner no piano com sua abordagem modal e poderosa criava uma base harmônica sólida e expansiva. Jimmy Garrison no contrabaixo era fundamental para estabelecer o ritmo por meio de linhas meditativas que reforçavam a espiritualidade da música. O baterista Elvin Jones trouxe uma intensidade de polirritmias e uma energia dinâmica que criou uma interação constante com Coltrane e contribuiu para o fluxo contínuo do disco. 

Juntos os quatro músicos formaram uma unidade quase telepática e um coletivo onde cada um se apoiava no outro para explorar inúmeras possibilidades sônicas. A dinâmica entre eles era tão profunda que a interação parecia ultrapassar o simples ato de tocar juntos. A natureza modular da música de Coltrane e suas escalas e harmonias abertas permitia que cada músico tivesse a liberdade para improvisar e criar uma sensação de constante descoberta e evolução. Contudo, o que realmente destacava esse quarteto era a coesão única que mantinha todas as ideias musicais unidas, permitindo que cada improvisação fluísse de maneira orgânica e sem perder a essência da jornada musical como um todo.

“A Love Supreme Pt I – Acknowledgement” inicia o disco com um baixo marcante em um padrão hipnótico que funciona como uma espécie de mantra musical e que estabelece desde o início o caráter meditativo do álbum. Então que Coltrane entra com um improviso fervoroso sobre essa base constante e explora a melodia com intensidade crescente que soa quase como uma oração musical. É possível sentir que o seu saxofone parece estar em uma espécie de busca interior, variando dessa forma entre momentos de serenidade e explosões emocionais. 

A melodia se desenvolve de uma forma que mais parece um ritual, onde a sensação de uma oração musical é eminente com cada nota carregando um peso espiritual e emocional. Esse equilíbrio entre contemplação e êxtase é o que torna essa uma introdução tão poderosa para o disco e prepara o ouvinte para uma experiência sonora imersiva e profundamente significativa. Mas ainda vale destacar que na parte final da peça, Coltrane surpreende a todos introduzindo algo completamente inesperado, ele canta – algo raro em sua carreira - as palavras “A Love Supreme” repetidamente, o que reforça ainda mais a natureza devocional do disco. 

"A Love Supreme Pt II – Resolution", se apresenta com um caráter mais enérgico e que carrega uma tensão rítmica e força expressiva. Se a sonoridade da peça de abertura foi mais meditativa, aqui as coisas soam mais marcantes e poderosas ao conduzir o ouvinte a um novo estágio da jornada espiritual de Coltrane. O pianista McCoy Tyner assume um papel essencial ao adicionar acordes intensos e percussivos que combinam perfeitamente com a pulsação rítmica precisa da música, criando assim, uma base harmônica robusta. Seu piano não apenas sustenta a estrutura da peça, mas também adiciona camadas de dramaticidade.

Enquanto isso, Elvin Jones transforma sua bateria em uma verdadeira tempestade rítmica que preenche o espaço com batidas dinâmicas e que impulsionam a música com uma sensação de movimento constante. Sobre essa estrutura vibrante, Coltrane se entrega a um solo apaixonado e visceral que explora variações modais com uma profundidade impressionante. Cada frase de seu saxofone carrega uma carga emocional intensa e que reflete sua devoção e entrega espiritual. 

“A Love Supreme Pt III - Pursuance" inicia com um solo destruidor de bateria repleto de variações rítmicas e que prepara o terreno para uma das performances mais eletrizantes do álbum. Diferente dos movimentos anteriores em que a espiritualidade se manifesta ora de forma contemplativa e ora em expressões intensas de devoção, o que predomina aqui é uma sensação predominante de estar no meio de uma jornada frenética rumo à iluminação e à compreensão divina. As teclas entregam acordes expressivos e que sustentam a estrutura harmônica enquanto Coltrane toma a frente com um solo incendiário. Seu saxofone se torna um canal de expressão emocional extrema e navega com uma fluidez impressionante entre registros altos e baixos, explorando toda a extensão do instrumento. A cada frase a peça parece se expandir como se estivesse tentando romper os limites do físico e do espiritual.

Esse caráter quase maníaco da improvisação encontrado em “Pùrsuance” reflete em uma espécie de sede insaciável de conhecimento e soa como se Coltrane estivesse usando cada nota e cada frase para expressar sua busca interior por algo maior, mais ou menos como se o seu saxofone se tornasse um veículo de questionamento e descoberta.

A interação entre os músicos atinge aqui um nível de coesão impressionante, onde cada um contribui para a construção de um fluxo sonoro que nunca se acomoda, muito pelo contrário, ele sempre parece estar avançando e sempre explorando novas possibilidades. O resultado é um dos momentos mais virtuosos e arrebatadores do disco, uma verdadeira catarse sonora que transcende a música em si e se transforma em um verdadeiro clamor espiritual.

"A Love Supreme Pt IV – Psalm" finaliza o disco de uma maneira sublime por meio de uma peça que se apresenta como uma espécie de oração sem palavras, onde cada nota do saxofone de Coltrane ressoa como um verso recitado com devoção. Diferente dos movimentos anteriores, aqui não há um pulso rítmico fixo ou uma estrutura convencional de jazz. Em vez disso, a música flui de maneira mais livre e introspectiva, como se o músico estivesse canalizando diretamente sua fé por meio do instrumento.

O aspecto mais fascinante desse movimento é que ele segue a cadência e a entonação de um poema que o próprio Coltrane escreveu e incluiu no encarte do álbum. Embora não seja falado, o poema pode ser "ouvido" através das frases melódicas do saxofonista que possuem a capacidade de imitar a inflexão natural da voz ao declamar um texto sagrado. Essa abordagem confere à peça um caráter profundamente contemplativo, com a ausência de ritmo fixo permitindo que a melodia flutue sem amarras e soe carregada de emoção. 

O impacto de A Love Supreme foi algo que ultrapassou as fronteiras que cercavam o jazz e se tornou também um marco não apenas musical, mas espiritual e cultural. Sua recepção foi extremamente positiva e consolidou Coltrane como um músico que elevou o seu som a um nível de expressão mística e filosófica nunca visto. O sucesso comercial do disco também foi algo impressionante, principalmente em se tratando de uma obra tão ousada e experimental. A Love Supreme passou das quinhentas mil cópias vendidas nos primeiros anos e garantiu seu status de clássico instantâneo. A crítica o reconheceu como um dos discos mais inovadores da história e elogiou sua fusão de improvisação livre e estruturas modais, além da sua profundidade emocional.

Sua influência se espalhou por diversos outros gêneros musicais, como no rock em que artistas como Carlos Santana e The Doors beberam assumidamente na fonte da espiritualidade e da intensidade do álbum. No hip-hop a sua abordagem rítmica e sua liberdade estrutural inspiraram produtores e músicos que buscavam pensar fora da caixinha. Na música eletrônica a sua exploração de camadas sonoras e mantras repetitivos ecoaram nas atmosferas criadas por artistas contemporâneos. A dimensão espiritual da obra fez com que ela fosse adotada até mesmo por diversos movimentos religiosos e filosóficos. Muitos enxergam o disco como uma espécie de oração universal e que é acessível a qualquer um que busque uma experiência extranatural por intermédio da música. 

A Love Supreme é uma jornada sonora que reflete a entrega total de Coltrane à sua arte e à sua busca interior, além de sua fé. Cada acorde e cada improvisação é enxarcado de uma devoção profunda e que faz parecer que ele está se comunicando diretamente com o divino por meio de seu saxofone. A complexidade harmônica e a liberdade expressiva de sua improvisação não são apenas marcas de um virtuoso, mas a manifestação de uma jornada espiritual que é tanto pessoal quanto universal.

Até hoje, A Love Supreme permanece como um dos maiores legados da história do jazz, inclusive, não sendo apenas um marco na evolução do gênero, mas também um testemunho eterno da jornada de Coltrane. Sua busca sempre foi por algo além da música, por uma conexão profunda e significativa com o cosmos e que pudesse ressoar em cada nota tocada. Uma obra-prima que continua a inspirar gerações, enquanto as convida à uma jornada interior de descoberta e transcendência.

NOTA: 10/10

Gênero: Jazz Espiritual

Faixas:

1. A Love Supreme Pt I – Acknowledgement - 7:42
2. A Love Supreme Pt II – Resolution - 7:17
3. A Love Supreme Pt III - Pursuance - 10:42
4. A Love Supreme Pt IV – Psalm - 7:02

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Lunar - Tempora Mutantur (2025)

                        

A Lunar é uma banda de metal progressivo com incursões de death metal, originária de Sacramento na Califórnia. Fundada em 2014 pelo baterista Alex Bosson, o grupo tem como principal característica uma sonoridade que passeia entre linhas atmosféricas e trechos de agressividade. Apesar de não ser um grupo de musicalidade necessariamente original ou que chame atenção por algum toque diferenciado, no geral são músicos muito seguros do que querem entregar por meio de sua música, ou seja, composições de melodias intrincadas e riffs densos, além de uma variação vocal dinâmica entre ora mais limpa e ora mais gutural. Entre suas principais influências figuram nomes como Opeth, Caligula’s Horse, Haken, Tool e Porcupine Tree. 

Tempora Mutantur é um álbum que se destaca por uma musica diversificada que vai além do metal progressivo ao incorporar influências de gêneros como metal melódico, rock progressivo clássico, death metal e música sinfônica. Sua musicalidade é guiada por uma estrutura dinâmica onde cada faixa é construída sobre boas texturas instrumentais, mudanças rítmicas e atmosferas que contrastam entre si. 

Tempora Mutantur é o 4º disco de estúdio da banda e também um trabalho conceitual. O próprio título que em latim significa "Os tempos mudam" já sugere a temática central do disco que é a inevitabilidade da mudança ao longo da vida. Cada faixa do álbum representa diferentes estágios de transformação, tanto pessoais quanto naturais, utilizando as estações do ano como metáfora para mudanças emocionais e existenciais. O ciclo das estações - verão, outono, inverno e primavera - reflete momentos de conflito, introspecção, perda e renovação.

"A Summer To Forget" é a faixa que inicia o disco e que estabelece o tom para toda a jornada do álbum. Se desenvolve de maneira envolvente, iniciando de forma melódica que gradualmente se transforma em passagens mais densas e pesadas a peça reflete a tensão entre lembranças agradáveis e experiências dolorosas. Essa progressão evidencia uma banda equilibrando muito bem momentos introspectivos e atmosféricos com explosões de intensidade visceral. Vale destacar também a fusão entre vocais limpos e guturais que conseguem intensificar a sensação de conflito interno. 

"Fall Back Into Old Habits" é a faixa mais longa do disco e proporciona à banda explorar suas capacidades progressivas de uma maneira ampla. Composta por seções intricadas, a peça exemplifica a habilidade do grupo de transitar entre diferentes climas e emoções ao longo de sua estrutura expansiva. A música conta com a participação de Wayne Ingram na guitarra solo, algo que adiciona mais profundidade aos momentos instrumentais. A música se desenrola de forma dinâmica, alternando passagens introspectivas e sutis com trechos intensos e mais explosivos.

"Seasonal Interlude" é uma música dividida em duas partes distintas, com a primeira metade mais serena e a segunda possuindo uma instrumentação mais pesada. No início a música se apoia em teclados etéreos e guitarras limpas que cria uma paisagem sonora delicada, enquanto os vocais suaves e melódicos evocam um tom contemplativo. Então que essa calmaria é interrompida conforme a faixa avança para sua segunda metade e traz com ela uma energia que se intensifica com riffs pesados, vocais guturais e uma instrumentação densa. O uso de saxofone nessa parte ajuda na construção de uma camada de som inesperado e experimental.

"Weakening Winter Touch” inicia com uma atmosfera melancólica que é sustentada por texturas de guitarra e teclados, criando desta forma um clima introspectivo. Conforme a música se desenvolve, a instrumentação se torna progressivamente mais intensa, incorporando riffs pesados, solo imponente de teclado, ritmos complexos e algumas mudanças de dinâmicas. A faixa captura muito bem a sensação de uma transição inevitável, onde o frio intenso começa a ceder espaço para a promessa de uma nova estação. 

"Spring In My Step", lançada como single, representa um dos momentos mais vibrantes e otimistas de Tempora Mutantur. Inclusive, foi descrita pelo baterista Alex Bosson como uma das músicas mais animadas do disco, sendo uma faixa que celebra a sensação de renovação – na primavera - que surge após períodos turbulentos – no inverno.  Melodias mais otimistas permeiam toda a faixa – até nos momentos de vocal gutural -, contrastando com o tom mais melancólico de músicas anteriores. No entanto, mesmo com essa abordagem mais acessível a banda mantém o equilíbrio entre técnica e emoção.

"Tempora Mutantur: Part I – Passage of Time" é uma peça extremamente emocional, onde o piano melancólico e os vocais emotivos são os principais ingrediente ao criarem uma atmosfera que remete à reflexão sobre a passagem do tempo. A participação especial de Sam Vallen (Caligula’s Horse) e Brory Gage na guitarra e na gaia, respectivamente, surge em momentos pontuais, adicionando texturas que elevam a música a uma sonoridade quase celestial. 

"Tempora Mutantur: Part II – Broken Pendulum" dá continuidade à suíte aprofundando a exploração do conceito de desequilíbrio temporal. A faixa começa a partir da ideia de instabilidade por meio de uma música que alterna entre ritmos irregulares e melodias dissonantes. Trata-se de uma jornada que oscila entre momentos de descontrole e de tentativas de equilíbrio, onde a alternância entre os diferentes estilos de vocais, ritmos e harmonias cria uma textura complexa e amplia a narrativa do disco sobre a transição e os desafios, além das transformações constantes que moldam nossa existência.

"Tempora Mutantur: Part III – Watch The Weather Change" encerra o disco com uma reflexão sobre a inevitabilidade da mudança e a aceitação das transformações constantes. Também traz à tona uma sensação de fechamento como se o ciclo da mudança nunca terminasse, mas se renovasse a cada nova fase. O riff de guitarra é cativante, enquanto a fusão dos vocais limpos e guturais soam como um dos pontos mais marcantes da faixa, representando o equilíbrio entre os extremos. A vida pode mudar a qualquer momento. No geral, a faixa traz uma mistura de peso e um refrão muito melódico,  proporcionando um contraste interessante entre o otimismo inicial e a realidade das frustrações. 

Apesar de não ser um disco de musicalidade única e que entrega elementos inovadores – algo normal dentro do metal progressivo, já que novidade sonora no estilo está cada vez mais difícil -, em "Tempora Mutantur”, a banda demonstrou habilidade em combinar narrativa lírica com algumas belas paisagens musicais, criando desta forma, uma experiência auditiva emocional gratificante. No geral, o álbum é uma exploração das mudanças sazonais e pessoais apresentadas através da lente do metal progressivo.

NOTA: 8,2/10

Gênero: Metal Progressivo, Death Metal

Faixas:

1. A Summer to Forget - 6:37
2. Fall Back into Old Habits - 11:16
3. Seasonal Interlude - 4:47
4. Weakening Winter Touch (8:46
5. Spring In My Step - 7:26
6. Tempora Mutantur: Part I - Passage of Time - 3:12
7. Tempora Mutantur: Part II - Broken Pendulum - 3:47
8. Tempora Mutantur: Part III - Watch the Weather Change - 4:51

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming, Bandcamp ou Youtube


Ghais Guevara - Goyard Ibn Said (2025)

                        

Ghais Guevara é um rapper que embora não tenha um nome muito reconhecido e possua a popularidade de outros nomes do gênero, tem uma base fiel de admiradores devido a sua autenticidade. Guevara se destaca na cena do hip-hop contemporâneo principalmente em meio ao movimento underground e se distingue por abordar temas profundos e relevantes, ao mesmo tempo em que mistura uma reflexão social com uma fluidez lírica.

Transitando entre o trap e o rap mais tradicional, Guevara usa de uma maneira bastante inteligente a música como uma plataforma que explora questões pessoais, políticas e sociais, sempre por meio de letras que são repletas de metáforas e simbolismos que refletem sua visão de mundo ao mesmo tempo que fazem que o ouvinte se questione sobre a realidade em que vive. 

Embora a sua carreira ainda esteja em um estágio em que ele busca maior visibilidade no mainstream, Guevara tem um impacto significativo dentro do nicho que ele ocupa, com muitos críticos e público da cena reconhecendo seu potencial. Desta forma, sua presença é forte no cenário do rap independente, onde continua a explorar seu próprio crescimento pessoal sempre com uma voz autêntica e sem medo de se expor.

Goyard Ibn Said é um disco que marca um momento significativo na trajetória de Guevara, afinal, não é apenas sua primeira grande obra completa, mas também seu primeiro trabalho sob o selo da gravadora Fat Possum Records. 

O disco se destaca por sua abordagem conceitual, sendo dividido em duas partes distintas com cada uma explorando diferentes nuances da experiência dentro da cultura hip-hop. Ao longo das faixas, o rapper constrói uma narrativa rica e multifacetada, refletindo sobre os desafios, os triunfos e as contradições que acompanham a ascensão à fama no universo do rap. Através de letras afiadas e uma identidade sonora particular, o álbum mergulha em temas que vão desde a autenticidade artística e a luta contra a comercialização da música até as pressões sociais e psicológicas impostas pela indústria.

Na primeira parte do disco, Guevara constrói a narrativa da ascensão meteórica de um protagonista fictício, Goyard, uma figura que encarna o arquétipo do anti-herói dentro do universo do hip-hop mainstream. Goyard representa o artista que atinge o sucesso absoluto, navegando por um mundo repleto de luxúria, ostentação e poder, onde a fama e a fortuna são vistas como a consagração definitiva. As faixas dessa primeira seção mergulham nas tentações e prazeres do estrelato ao explorarem a grandiosidade do reconhecimento público, a adulação dos fãs, as riquezas acumuladas e a sensação intoxicante de estar no topo da indústria. Ao mesmo tempo, Guevara tece reflexões sobre o deslumbramento e a superficialidade que muitas vezes acompanham esse tipo de trajetória e sugere que a glória do sucesso podem ser tão efêmera quanto sedutora.

No entanto, a segunda parte do álbum toma um rumo inesperado e mais sombrio, trazendo um forte contraste com a euforia inicial. O foco passa a ser as experiências trágicas e os desafios devastadores enfrentados por Goyard no auge de sua carreira. Aqui Guevara destrói a ilusão do sucesso absoluto, expondo as consequências da fama desenfreada e a verdadeira face da indústria musical. As músicas exploram temas como a exploração dos artistas, a pressão insustentável para se manter relevante, o isolamento emocional, os abusos e as traições que podem acompanhar o estrelato. Desta forma, a narrativa se desenrola como uma advertência contra as armadilhas do show business e entrega uma visão crítica e realista sobre o custo psicológico e humano da busca incessante pelo topo.

Musicalmente o disco se destaca pela sua abordagem que equilibra experimentalismo e tradicionalismo dentro do hip-hop. O álbum percorre uma ampla gama de estilos ao incorporar elementos clássicos do boom bap, recortes sofisticados de soul e jazz, sintetizadores futuristas, batidas quebradas e texturas eletrônicas vanguardistas, resultando em uma estética sônica que consegue transitar com fluidez entre o passado, o presente e o futuro do gênero. 

Guevara demonstrou seu domínio tanto como compositor quanto produtor ao escrever e produzir a maior parte de Goyard Ibn Said, entregando ao álbum sua visão artística completa, porém, ele contou com a colaboração de produtores e artistas que o ajudaram a expandir ainda mais a sonoridade do projeto. Nomes como purdyflacks, LILITH e DJ Haram que trouxeram suas próprias influências e estilos, enriquecendo ainda mais a produção.

Sobre os artistas que aparecem em algumas faixas, Yoko McThuggin, com seu estilo agressivo contribui para a faixa "Monta Ellis", trazendo uma energia intensa e visceral. FARO, em "Yamean", entrega uma performance introspectiva que se completa com o tom melancólico da música. ELUCID, em "Bystander Effect", traz uma abordagem lírica contemplativa, enquanto McKinley Dixon, que é conhecido por seu lirismo e estilo técnico, acrescenta sua marca em "The Apple That Scarcely Fell", com uma entrega carregada de emoção.

Além das contribuições vocais e de produção, o álbum conta com o toque especial de alguns instrumentistas que foram essenciais para que fosse possível chegar na sonoridade do projeto. Seb Zel, com sua guitarra em “L4” adiciona camadas de textura meditativas, enquanto Desmond Teague, com seus instrumentos de sopro, cria uma atmosfera sonora única, trazendo uma elegância e uma sofisticação quase jazzística em "The Apple That Scarcely Fell", que se entrelaça com os elementos do hip-hop, na mesma faixa ainda tem a participação de Annie Elise, com seu trabalho de cordas. 

A combinação desses talentos que acompanharam Guevara, conferiu a Goyard Ibn Said uma grande versatilidade sonora e permitiu que o álbum fosse além das fronteiras tradicionais do hip-hop. O resultado é um disco musicalmente rico e repleto de texturas que proporcionam uma experiência imersiva para o ouvinte.

NOTA: 8,1/10

Gênero: Hip Hop

Faixas:

1. Introduction To Act 1 - 1:29
2. The Old Guard Is Dead - 3:04
3. Leprosy - 3:25
4. 3400 - 3:22
5. I Gazed Upon The Trap With Ambition - 3:59
6. Monta Ellis (feat Yoko McThuggin) - 3:12
7. Yamean (feat FARO) - 3:25
8. Camera Shy - 3:06
9. Introduction To Act 2 - 0:55
10. Bystander Effect (feat ELUCID) - 3:05
11. 4L - 4:06
12. The Apple That Scarcely Fell (feat McKinley Dixon) - 3:55
13. Branded - 3:25
14. Critical Acclaim - 3:46
15. Shaitan's Spiderweb - 4:42
16. You Can Skip This Part - 4:49

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming, Bandcamp e Youtube

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Anna B Savage - You & i are Earth (2025)


Anna B Savage sempre esteve cercada por um ambiente que a estimulou culturalmente, dito isso, é óbvio que não ia demorar muito para que a arte não apenas começasse a fazer parte, mas também começasse a desempenhar um papel fundamental em sua vida. Afinal, vindo de uma família que sempre valorizou a expressão artística, ela cresceu absorvendo diversas influências que a levaram a desenvolver sua própria identidade musical.

Intimista e confessional são duas palavras chaves para que possamos definir a suas músicas, assim como a maneira delicada e intensa que são abordados temas como, por exemplo, o amor em suas diversas formas, a dor da perda e as complexidades da condição humana. Liricamente costuma permear por uma honestidade crua e uma vulnerabilidade clara, o que acaba criando uma conexão genuína com quem as ouve. Através de suas melodias e de sua voz expressiva, Anna constrói um universo sonoro particular. 

You & I Are Earth é o seu terceiro álbum de estúdio, um trabalho que captura um momento de transformação marcado por um processo de cura e uma redescoberta curiosa do mundo ao seu redor. A própria cantora descreve o disco como "uma carta de amor a um homem e à Irlanda", evidenciando a carga emocional e as conexões profundas que abraçam o trabalho como um todo. Musicalmente, o álbum se destaca por uma sonoridade íntima e expansiva, na qual elementos naturais como o som das ondas do mar se entrelaçam de uma maneira orgânica por meio, por exemplo, de arranjos de cordas, criando desta forma uma atmosfera imersiva. 

"Talk to Me", a ideia de uma sensação de recuperação emocional, amor e conexão profunda com outra pessoa é exposta dentro de uma música de tonalidade introspectiva, envolvente e guiada por uma melodia delicada e contemplativa. Com uma interpretação sincera e sonoridade minimalista, a peça convida o ouvinte a se perder na profundidade da sua mensagem e beleza melancólica de suas notas. “Lighthouse” é uma balada intimista que se destaca por sua delicadeza e atmosfera acolhedora. O arranjo instrumental é centrado em um violão e alguns toques pontuais e sutis de piano que adicionam profundidade e emoção. Os vocais de Savage reforçam o tom melancólico e esperançoso da canção, conduzindo a narrativa de forma envolvente. A letra faz uso da poderosa metáfora de um farol, representando um amor que serve como guia e porto seguro. “Donegal” é uma comovente homenagem à região irlandesa de mesmo nome, local esse onde Savage passou parte de sua vida. O arranjo contém melodias envolventes que transportam o ouvinte para as paisagens de Donegal e cria uma experiência emotiva e nostálgica.

“Big & Wild” é uma faixa curta, porém intensa, que encapsula muito bem a energia da natureza. Com uma sonoridade que transmite uma sensação de liberdade, a peça evoca imagens de vastas paisagens. Os arranjos podem sugerir uma conexão visceral com o mundo natural, enquanto a interpretação vocal reforça a sensação de entrega e aventura. “Mo Cheol Thú” é construída sobre a suavidade de um violão dedilhado, enquanto a melodia se desenvolve gradualmente e ganha mais corpo com uma onda envolvente de teclados que intensifica sua carga sentimental. A voz de Savege carrega ternura e sinceridade, transmitindo a euforia e a vulnerabilidade de estar apaixonada, criando dessa forma uma experiência musical imersiva e cativante.

“Incertus” é um interlúdio com menos de um minuto de duração e funciona como uma ponte atmosférica que cria uma transição sutil entre duas faixas. “I Reach for You in My Sleep”, com uma instrumentação contida, deixa espaço para os vocais de Savage que se destacam com sua intensidade emocional crua e sincera. Através dessa simplicidade sonora e a ideia lírica que traz uma sensação de intimidade profunda e doçura no relacionamento, a música se torna um espelho de emoções profundas. 

“Agnes” conta com a participação da cantoira, Anna Mieke. Se trata de um pop folk onde o violão estabelece a base melódica, enquanto bateria e baixo são executados de uma maneira envolvente, criando dessa forma um ótimo movimento e fluidez. Os trabalho de clarinetes são reconfortantes e acrescentam um toque etéreo e atmosférico à canção. Musicalmente combina bastante com a narrativa de temas de natureza, transformação, misticismo e o desejo de conexão com forças além da compreensão humana.

"You & I Are Earth", a faixa título também é aquele momento em que Anna sintetiza todos os temas centrais do álbum e explora a interconexão entre indivíduos e a Terra de forma poética. A melodia e os arranjos se desenvolvem por meio de harmonias expansivas, texturas orgânicas e ritmos sutis que remetem à respiração do próprio mundo natural. A belíssima instrumentação conta com elementos acústicos e atmosféricos. "The Rest of Our Lives" é a última faixa do disco e serve como um desfecho contemplativo carregado de emoção, do tipo que reflete sobre um relacionamento que se desenvolveu de forma lenta e cuidadosa ao longo dos anos. Com uma melodia suave a música consegue equilibrar nostalgia e otimismo ao capturar a incerteza do amanhã ao mesmo tempo em que abraça a beleza da jornada. 

Por meio de You & I Are Earth, Anna B Savage consegue unir letras introspectivas a arranjos musicais que evocam tanto paisagens emocionais quanto físicas, criando desta forma uma experiência auditiva imersiva. Suas composições exploram a dualidade, como, por exemplo, entre fragilidade e força ou intimidade e vastidão, resultando em músicas que não apenas narram sentimentos, mas os fazem ressoar no ouvinte. A instrumentação é rica em detalhes e texturas orgânicas que ampliam a sensação de conexão com a natureza e com o próprio eu. Resumindo, o álbum se desdobra como um espaço de contemplação e descoberta, onde cada faixa funciona como um fragmento de um universo maior e repleto de emoção, além de vulnerabilidade e pertencimento.

NOTA: 7,8/10

Gênero: Folk de Câmara

Faixas:

1. Talk to Me - 3:34
2. Lighthouse - 4:14
3. Donegal - 3:24
4. Big & Wild - 1:36
5. Mo cheol Thú - 4:50
6. Incertus - 0:56
7. I reach for you in my Sleep - 3:42
8. Agnes (ft. Anna Mieke) - 3:47
9. You & i are Earth - 2:56
10. The rest of our Lives - 2:23

Onde Ouvir: Plataformas d Streaming, Bandcamp e Youtube

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

40 anos de: Hounds of Love - Kate Bush (1985)

                       

Hounds of Love é o quinto disco da cantora, compositora e produtora britânica Kate Bush, sendo muitas vezes considerado sua obra-prima e um marco que representa um retorno brilhante após três anos desde o lançamento do excelente The Dreaming (1982), um álbum experimental e audacioso que apesar de também aclamado pela crítica, teve uma recepção comercial modesta. Com Hounds of Love, Bush não apenas reafirmou seu talento visionário, mas também alcançou um nível de sucesso sem precedentes em sua carreira.

O álbum se destacou por sua abordagem ao equilibrar experimentação artística e acessibilidade pop que acabaria conquistando tanto a crítica especializada quanto o público como um todo. Seu single principal, Running Up That Hill (A Deal with God) se tornou-se um dos maiores clássicos da artista e demonstrou sua habilidade de unir letras introspectivas a uma sonoridade atmosférica e envolvente. 

A estrutura do álbum também reforça sua singularidade ao ser dividido em duas partes distintas, com o lado A – que leva o nome do disco - oferecendo músicas mais diretas e radiofônicas, enquanto que o lado B, intitulado The Ninth Wave traz faixas que juntas geram a suíte conceitual que narra a história de uma pessoa à deriva no mar que luta pela sobrevivência enquanto passa por visões e reflexões. Esse formato narrativo aliado ao uso pioneiro de samplers e uma produção sofisticada fez de Hounds of Love um dos álbuns mais influentes da música pop experimental.

Após o lançamento de The Dreaming, Bush optou por se afastar temporariamente do cenário musical. Em vez de seguir imediatamente para um novo projeto sob a pressão da indústria fonográfica, ela tomou a decisão estratégica de construir seu próprio estúdio de gravação, o Solstice Studios em sua casa na zona rural da Inglaterra. Essa mudança representou um ponto importante em sua carreira, pois lhe proporcionou um nível de liberdade criativa inédito. Livre das restrições impostas pelos estúdios comerciais e das limitações de tempo e orçamento, Bush explorou novas possibilidades sonoras com a calma que nunca pode ter antes. Esse ambiente íntimo e controlado foi fundamental para a concepção de Hounds of Love.

Vale destacar também, que a tecnologia desempenhou um papel essencial na construção do sonora do disco ao permitir que Kate expandisse ainda mais os limites da experimentação musical. Um dos elementos centrais dessa abordagem foi o uso do Fairlight CMI, um dos primeiros sintetizadores digitais equipados com sampler e que revolucionou a maneira como os artistas podiam manipular e integrar sons em suas composições. Para Bush não chegava a ser algo inédito, afinal, ela já havia explorado esse instrumento em The Dreaming, porém, foi em Hounds of Love que ela o utilizou de forma mais requintada. 

O álbum realmente se destaca em como consegue mesclar instrumentos acústicos e eletrônicos ao fundir cordas, percussões tribais e vozes etéreas com camadas sintéticas geradas pelo Fairlight CMI. A oposição que ocorre entre o orgânico e o tecnológico resultou em uma sonoridade envolvente que se tornou uma das marcas registradas do disco. Além disso, Bush também utilizou gravações em fita manipuladas sobrepondo e distorcendo elementos sonoros para alcançar efeitos imersivos.

- Hounds of Love -

"Running Up That Hill (A Deal with God)" é o single principal do disco e um dos maiores sucessos da carreira de Kate Bush, tanto em impacto cultural quanto em desempenho comercial. A música traz uma abordagem poética sobre empatia e compreensão nas relações humanas. A escolha do título original, A Deal with God, foi considerada controversa por algumas gravadoras, levando Bush a acrescentar Running Up That Hill para evitar possíveis restrições comerciais. A faixa se destaca por sua batida hipnótica que se sustenta por uma percussão eletrônica e sintetizadores etéreos que criam uma atmosfera emocionalmente envolvente. O vocal característico de Bush eleva ainda mais a carga dramática da canção, o que a torna uma experiência sonora única. Não tem como deixar de destacar também que apesar de já ser um clássico desde seu lançamento, a música teve um ressurgimento em 2022 quando foi utilizada em uma cena icônica de Stranger Things. 

"Hounds of Love", a faixa-título é uma das músicas mais emblemáticas do disco, tanto pela sua intensidade sonora quanto pela profundidade lírica. A instrumentação é rica e densa, além de ser marcada por uma bateria intensa e que cria uma sensação de urgência, enquanto as cordas adicionam uma dimensão quase cinematográfica à música. A estrutura musical, com suas transições dinâmicas e arranjos complexos reflete perfeitamente o tema central da letra que explora o medo e o desejo que surgem quando se entrega ao amor de forma mais intensa e vulnerável.

"The Big Sky" apresenta um dos momentos mais dinâmicos do álbum. Com um ritmo acelerado, pulsante e uma vibração dançante, a canção reflete a celebração da vastidão do céu e a maravilha da natureza. Kate por meio de sua performance vocal transmite uma sensação de liberdade. O uso de percussão animada e sintetizadores alegres confere à música uma sensação como a de uma observação do céu que convida o ouvinte a refletir sobre as infinitas possibilidades do universo. A letra também tem um tom de introspecção, mas com uma abordagem leve ao capturar a simplicidade e a maravilha de olhar para cima e perceber a vastidão da vida e do mundo natural.

"Mother Stands for Comfort" traz com ela um dos momentos mais atmosféricos do disco ao se desenvolver dentro de uma sonoridade etérea construída por meio de camadas de sintetizadores que criam uma sensação de imersão, quase como se estivéssemos sendo envoltos por um manto de névoa. O ritmo tranquilo e a voz suave de Kate adicionam uma qualidade hipnótica. A letra sugere um relacionamento entre mãe e filho, mas a natureza desse vínculo é ambígua e desconcertante. Embora a mãe seja retratada como um símbolo de conforto e refúgio, algo em sua proteção parece suspeito. Um belo contraste entre melodia serena e tensão emocional. 

"Cloudbusting" é uma das faixas mais emocionais de Hounds of Love, com uma narrativa comovente inspirada na história real de Wilhelm Reich, um psicanalista e cientista controverso, e seu filho Peter. A canção é uma recriação de um momento traumático da infância de Peter quando ele testemunhou seu pai sendo perseguido e preso pelas autoridades, após ser alvo de investigações por suas ideias não convencionais sobre energia e a psique humana. Reich foi preso em 1956 e sua história de perseguição política e científica é o pano de fundo para “Cloudbusting”. O arranjo é lindíssimo e traz um trabalho intenso e dramático de cordas, a bateria é envolvente e há uma excelente força rítmica, enquanto isso, os sintetizadores dão uma qualidade transcendental à música, como se o ouvinte estivesse sendo transportado para dentro da mente de Peter que está imersa em uma realidade de confusão e angústia. 

- The Ninth Wave –

“And Dream of Sheep" já começa a suíte por meio da representação de um momento de exaustão e desespero, onde a protagonista está sozinha no oceano cercada pela escuridão e pelo frio, enquanto estabelece um estado emocional que mostra sua luta entre o desejo de sobreviver e a tentação de se render ao sono. Musicalmente possui uma textura suave que reforça a ideia de um sonho. O arranjo é minimalista e apresenta piano, sintetizadores e vocais quase sussurrados. Essa leveza instrumental cria uma dualidade com a ansiedade da letra e intensifica o contraste entre a esperança e o medo da morte. 

“Under Ice” é uma peça minimalista e sombria construída em torno de cordas sintetizadas. Os acordes criam uma pulsação rítmica irregular e uma instrumentação fria e mecânica que parece querer reforçar a sensação de um ambiente hostil. Aqui Kate canta de uma maneira mais tensa e contida, aumentando dessa forma a dramaticidade da música que liricamente evoca a sensação de aprisionamento e desorientação. A personagem parece sonhar que está patinando sobre um lago congelado, mas logo percebe algo ou alguém preso sob o gelo.

"Waking the Witch" possui uma letra que descreve uma mulher sendo julgada, acusada e condenada como bruxa. A protagonista é interrogada e as palavras que a cercam são ameaçadoras e carregadas de uma sensação de perseguição. Musicalmente começa com um piano calmo e vozes suaves, mas rapidamente se transforma em um caos sonoro com vocais distorcidos, batidas intensas e vozes ameaçadoras que parecem representar inquisidores. Possui uma abordagem fragmentada e experimental, além de mudanças bruscas de ritmo e vocais sobreposto.

"Watching You Without Me" carrega uma atmosfera misteriosa criada por um clima melancólico. A base feita pelos sintetizadores é deliciosa, enquanto a bateria eletrônica minimalista ao fundo traz uma espécie de balanço hipnótico. Os vocais parecem soar ao longe, o que reforça o conceito da letra que tem a ideia de transmitir um profundo senso de frustração e impotência. A narradora parece estar separada de seu amado enquanto o observa sem que ele possa vê-la ou ouvi-la.

"Jig of Life" adota uma musicalidade mais folclórica e celta através de arranjos de violão, uma percussão alegre e uma melodia enérgica que evoca a imagem da clássica festa da terceira classe do Titanic em que o Jack dança com a Rose. Essa sonoridade mais vibrante contrasta com a tensão das faixas anteriores. Kate canta de uma maneira animada e bastante expressiva uma música que carrega uma letra mais otimista ao falar sobre o impulso de viver, de lutar e de se renovar, além de transmitir uma sensação de esperança e de estar prestes a romper com o passado. 

“Hello Earth”, musicalmente é um dos momentos mais épicos do disco. Inicialmente entrega uma sonoridade suave e misteriosa, mas não demora muito e ela se eleva para uma seção orquestral incrível que inclui alguns vocais em coro e belíssimos arranjos de cordas. Os vocais suaves de Bush criam uma sensação de introspecção e solidão, enquanto a instrumentação evoca imensidão e até um pouco de misticismo. Sua letra representa um momento de transcendência e contemplação, onde a protagonista exausta e à beira da morte entra em um estado de quase sonho. 

"The Morning Fog" tem uma sonoridade reconfortante com um ritmo animado e arranjo de piano e cordas que cria uma sensação de serenidade. A melodia é do tipo acolhedora e os vocais de Kate são suaves e delicados quase como um suspiro de alívio. A música traz uma sensação de paz por meio de uma estrutura simples e que encerra a suíte de forma otimista. Diferentemente das faixas anteriores, marcadas pelo desespero, medo e alucinações, "The Morning Fog" traz uma sensação de renascimento e esperança. Após a longa luta contra a morte, a protagonista parece finalmente emergir para a superfície e encontrar a salvação. 

Na época de seu lançamento, Hounds of Love foi recebido com aclamação tanto da crítica quanto do público e consolidou Kate Bush como uma das artistas mais inovadoras de sua geração. O álbum demonstrou não apenas sua habilidade única como compositora e produtora, mas também sua capacidade de equilibrar experimentação e acessibilidade ao criar um trabalho que era simultaneamente ousado e comercialmente viável. 

A prova disso é que o disco estreou diretamente no topo das paradas britânicas, desbancando ninguém mais e ninguém menos que Like a Virgin da Madonna, garantindo a Bush seu segundo álbum número um no Reino Unido. O sucesso foi impulsionado principalmente pelo single "Running Up That Hill (A Deal with God)" e que se tornou um de seus maiores hits. A música não apenas conquistou o público europeu, mas também abriu portas para Bush no mercado estadunidense, onde alcançou posições elevadas na Billboard Hot 100, algo que até então ela não havia conseguido com suas obras anteriores.

Além do desempenho comercial, vale destacar também que o álbum foi celebrado pela crítica por sua produção inovadora, sua fusão de elementos eletrônicos e acústicos e sua abordagem cinematográfica das composições. O lado A do disco, repleto de faixas mais diretas e acessíveis, foi elogiado por sua força melódica e riqueza instrumental, enquanto isso, o lado B impressionou pela ambição conceitual e sua narrativa musical envolvente.

Ao longo dos anos, Hounds of Love só cresceu em prestígio, sendo frequentemente citado como um dos álbuns mais influentes da década de 1980 e um marco na música pop experimental. Seu impacto se estendeu por décadas, inspirando até hoje diversos artistas e resgatando novas gerações de ouvintes, especialmente após o ressurgimento de "Running Up That Hill" nas paradas em 2022 graças à sua inclusão na série Stranger Things. Com isso, o legado do álbum foi ainda mais reforçado, reafirmando sua posição como uma das obras mais visionárias e atemporais da história da música popular. Uma obra-prima. 

NOTA: 10/10

Gênero: Art Pop, Pop Progressivo

Faixas:

- Hounds Of Love -

1. Running Up That Hill - 5:03
2. Hounds Of Love - 3:03
3. The Big Sky - 4:41
4. Mother Stands For Comfort - 3:08
5. Cloudbusting - 5:10

- The Ninth Wave -

6. And Dream Of Sheep - 2:45
7. Under Ice - 2:21
8. Waking The Witch - 4:18
9. Watching You Without Me - 4:07
10. Jig Of Life - 4:04
11. Hello Earth - 6:13
12. The Morning Fog - 2:34

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

Limite Acque Sicure - Un'Altra Mano Di Carte (2025)

                       

O Limite Acque Sicure é uma banda italiana de rock progressivo formada em 2005 na cidade de Ferrara. Inicialmente o grupo dedicava-se a interpretar clássicos do rock progressivo, especialmente do Banco del Mutuo Soccorso, banda que é uma influência marcante em seu trabalho. Com o tempo eles consolidaram sua formação e identidade musical, o que resultou em composições próprias que mesclam o espírito aventureiro do rock progressivo clássico com uma abordagem contemporânea. 

Em 2022 a banda lançou seu álbum de estreia autointitulado. Este trabalho apresenta um conceito bem definido ao explorara de maneira profunda temas como transformação, tomada de riscos e evolução, tanto no aspecto humano quanto no campo artístico. A sonoridade do disco é marcada pela diversidade de influências variadas de seus integrantes que abrange desde o metal e o fusion até a música clássica e, claro, o rock progressivo. Destaque para a releitura da suíte “Il Giardino del Mago”, do Banco del Mutuo Soccorso, sendo uma clara homenagem às raízes e às inspirações que moldaram a identidade da banda.

A formação atual é composta por Andrea Chendi nos vocais, Ambra Bianchi na flauta, vocais e harpa, Antonello Giovannelli nos teclados, Luca Trabanelli nas guitarras, Paolo Bolognesi na bateria e Francesco Gigante no baixo. Cada um dos membros carrega consigo uma bagagem musical singular que enriquece a musicalidade da banda com suas influências distintas. Essa diversidade de experiências e estilos se reflete na identidade musical do grupo, resultando em uma fusão dinâmica e expressiva que permeia suas composições.

Un'Altra Mano Di Carte, o mais recente trabalho da banda, é um álbum conceitual que apresenta seis narrativas distintas, cada uma abordando aspectos profundos da condição humana. Através de suas composições o disco explora temas como a maldade inerente ao ser humano, o narcisismo, grandes conquistas ao longo da história e as injustiças sociais que marcaram diferentes épocas. Com uma abordagem lírica e musical envolvente, o disco conduz o ouvinte por um percurso intenso, reflexivo e que destaca a habilidade da banda em combinar complexidade temática com uma sonoridade rica e dinâmica.

"Joker" abre o álbum com uma sonoridade intensa que é impulsionada por um riff poderoso de guitarra e uma seção rítmica firme. A energia inicial dá lugar a um momento mais contido quando os vocais, claramente influenciados pelo Gentle Giant, entram em cena e trazem nuances sofisticadas à composição. Um dos pontos altos da faixa é o trabalho de cravo que adiciona uma atmosfera vibrante com suas linhas otimistas, contrastando com o piano que assume um tom mais sombrio durante a pausa que acompanha o coro. À medida que a música se aproxima do final a instrumentação se torna cada vez mais sinfônica. 

"Il Racconto Di Juan Della Sua Terra" é uma obra que respira a essência da escola progressiva italiana. A composição mescla de maneira hábil elementos de música medieval, folclórica italiana e rock progressivo, criando assim uma atmosfera sônica multifacetada. O grande trunfo dessa peça está no trabalho coletivo da banda, onde cada instrumento se encaixa perfeitamente, desde as guitarras precisas e a bateria técnica até as linhas profundas de baixo. Os teclados sinfônicos adicionam uma camada de grandiosidade, enquanto o vocal evocativo guia a narrativa e traz uma carga emocional que se entrelaça com a complexidade da composição. 

"Natale 1914" é uma peça inspirada no primeiro Natal da Primeira Guerra Mundial. Um dos grandes destaques da música é a performance de Ambra Bianchi, que em momentos pontuais, com seu canto soprano confere à faixa um toque etéreo e celestial. A música se alterna entre passagens mais taciturnas e linhas mais edificantes. A alternância de atmosferas do sombrio ao sublime torna essa uma peça emotiva e refletiva que captura a essência do contraste vivido pelos soldados e civis durante um período histórico tão marcante.

"Non Il Bergerac" tem um início marcado por um estudo para piano bastante sofisticado. Em seguida a peça ganha ainda mais profundidade com a entrada dos vocais emotivos que conduzem a melodia com muita sensibilidade. À medida que a música se desenvolve o arranjo se expande e incorpora todos os instrumentos em uma construção sonora belíssima. Embora a seção rítmica seja sólida e as guitarras se encaixem de forma precisa – incluindo um belo solo -, o teclado é o destaque ao adicionar camadas sinfônicas e uma atmosfera grandiosa à composição. Outro ponto alto é a participação de Ambra Bianchi nos vocais de apoio que enriquecem a carga emocional da música. 

"Chita" traz Ambra Bianchi nos vocais conduzindo a narrativa comovente de uma música que aborda a luta pela emancipação feminina e o sofrimento prolongado das mulheres que são frequentemente tratadas como cidadãs de segunda classe ao longo da história. Sua interpretação reforça o impacto emocional da letra. A instrumentação é construída com equilíbrio e sensibilidade, onde piano e guitarra se entrelaçam brilhantemente e mantem a fluidez da peça. Enquanto isso,  baixo e bateria se apresenta de maneira envolvente e criam uma estrutura firme que sustenta todo o arranjo. No final, Ambra ainda dá uma verdadeira aula de canto que remete a ninguém menos que Clare Torry e sua performance emblemática em “The Great Gig in the Sky” do Pink Floyd. Sem dúvida, uma composição poderosa e emotiva.

"Storie Perdute" encerra o álbum com uma sonoridade progressiva poderosa repleta de vigor e paixão. A faixa se destaca pela sua dinâmica bem direcionada que se alterna com maestria entre momentos de força e outros atmosféricos. A seção rítmica ancorada pelo baixo e pela bateria novamente se apresenta bastante enérgica ao construir uma base sólida e pulsante. A guitarra se mostra expressiva e marcante ao adicionar camadas de profundidade à composição. O trabalho dos teclados, seja por meio de órgão, Mellotron ou sintetizadores, cria paredes sonoras que ajudam a ilustrar uma aura quase etérea da peça. 

Un'Altra Mano Di Carte é uma obra que encapsula toda a essência do rock progressivo italiano ao combinar sofisticação instrumental, riqueza melódica e temáticas profundas. O disco transita entre momentos de maior intensidade e passagens mais atmosféricas e reflexivas, mas sempre com uma construção sonora detalhada e bem direcionada. A banda demonstra um domínio técnico impressionante ao criar arranjos que valorizam tanto o virtuosismo individual quanto o trabalho coletivo. A seção rítmica é poderosa e dinâmica, fornecendo uma base sólida para guitarras expressivas e teclados exuberantes, que vão do cravo e órgão ao Mellotron.

Os vocais alternam entre interpretações emotivas e passagens mais etéreas, com Andrea Chendi transmitindo profundidade e sensibilidade em suas performances, enquanto Ambra Bianchi adiciona um toque celestial com sua voz soprano e contribui para a harmonizações que eleva ainda mais o impacto emocional do álbum. Resumindo, Un'Altra Mano Di Carte é um trabalho sofisticado e musicalmente envolvente que consolida a Limite Acque Sicure como uma banda que honra as tradições do rock progressivo italiano ao mesmo tempo em que imprime sua própria personalidade.

NOTA: 9,7/10

Gênero: Rock Progressivo

Faixas:

1. Joker - 8:35
2. Il Racconto Di Juan Della Sua Terra - 7:20
3. Natale 1914 - 10:13
4. Non Il Bergerac - 8:02
5. Chita - 8:56
6. Storie Perdute - 8:14

Onde Ouvir: Youtube

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

50 anos de: Voyage of the Acolyte - Steve Hackett (1975)


Steve Hackett é o tipo de guitarrista que cativa qualquer apreciador de um toque refinado e elegante nas seis cordas. Mais do que ser lembrado – ou, para alguns, conhecido – como o ex-guitarrista do Genesis, Hackett merece ser celebrado por sua brilhante trajetória solo que foi construída sobre uma base de qualidade excepcional e versatilidade impressionante.

Sem jamais se prender a rótulos, o guitarrista transita com naturalidade por uma ampla gama de estilos sempre imprimindo sua identidade única independentemente do gênero que explora. Seja no jazz-rock, pop, rock progressivo, música brasileira, blues, violão clássico ou até na música erudita, sua abordagem é sempre sofisticada e inspiradora. No fim das contas, para Steve Hackett pouco importa o território musical que escolhe desbravar — onde quer que esteja, sua música floresce de uma forma inconfundível.

Voyage of the Acolyte não é apenas o seu primeiro álbum solo, mas também a primeira incursão solo de qualquer membro do Genesis. Com um forte caráter progressivo e experimental, o disco revela a identidade musical distinta de Hackett, tanto como compositor quanto como guitarrista. Suas faixas exploram uma rica tapeçaria sonora, entrelaçando várias de suas influências.

Durante sua passagem pelo Genesis, já se destacava por uma abordagem inovadora da guitarra ao introduzir técnicas como tapping e volume swells, além do uso sofisticado de texturas e efeitos que ampliavam a paisagem sonora da banda. No entanto, dentro do grupo ele frequentemente sentia que suas ideias não eram plenamente aproveitadas. Foi nesse contexto que Voyage of the Acolyte surgiu como uma oportunidade para Hackett expandir sua criatividade sem amarras, permitindo-lhe desenvolver sua própria visão musical de maneira mais ampla e pessoal. O álbum não apenas reafirmou seu talento como compositor e instrumentista, mas também marcou o início de uma jornada solo repleta de experimentação e originalidade.

A principal inspiração por trás de Voyage of the Acolyte veio do tarô, uma influência que se manifesta tanto nas letras quanto na atmosfera envolvente das músicas. Cada faixa remete a um arcano maior e tece uma narrativa simbólica que reflete a jornada humana através do mistério e da descoberta. Essa temática mística permeia toda a obra, o que lhe dá um caráter quase ritualístico. O próprio título do álbum evoca a trajetória do "acólito", um aprendiz espiritual que busca sabedoria e evolução por meio das experiências da vida.

A sonoridade de Voyage of the Acolyte é uma fusão de rock progressivo com influências sinfônicas e folk que são enriquecidas por toques eletrônicos e elementos experimentais. O álbum destaca-se por sua construção cuidadosa de texturas sonoras, sendo esse, um dos maiores trunfos de Steve Hackett tanto como guitarrista quanto como arranjador. Sua abordagem sonora perfeita incorporou efeitos atmosféricos e gravações em camadas, além de uma estética quase cinematográfica na estrutura das faixas. 

O álbum se inicia com "Ace of Wands", uma faixa eletrizante que prende o ouvinte desde os primeiros segundos e marca a sua identidade com uma guitarra vibrante e complexa – um verdadeiro cartão de visitas do estilo de Hackett. A energia da música é impulsionada pela excelente bateria de Phil Collins, enquanto John Hackett adiciona uma camada extra de intensidade com sua flauta executada de maneira agressiva e dinâmica. Uma composição repleta de mudanças de andamento, soar de sinos e passagens de guitarra que transitam entre o virtuosismo e a sensibilidade melódica. Mais do que apenas a faixa de abertura, "Ace of Wands" também marca o início de uma carreira brilhante e duradoura. 

"Hands of the Priestess Part I" é uma peça etérea e envolvente conduzida por uma flauta delicada e expressiva que imprime uma atmosfera encantadora. A guitarra de Hackett com seu tom misterioso e levemente assombrado evoca paisagens sonoras que ele ajudou a construir durante sua passagem pelo Genesis, porém, aqui ganha uma nova abordagem ao soar como algo mais pessoal e expansivo. O resultado é uma composição de beleza hipnótica com cada nota parecendo estar flutuando no.

"A Tower Struck Down" é uma das faixas mais intensas e sombrias do álbum, mergulhando em uma sonoridade agressiva quase caótica. A poderosa base rítmica é ancorada por Mike Rutherford, que entrega uma linha de baixo robusta e sendo reforçada ainda mais pela presença de Percy Jones em um segundo baixo. Hackett explora tons ásperos e atmosferas densas enquanto a faixa evolui de forma imprevisível. Em determinado momento, a composição se transforma em uma paisagem sonora inquietante, onde camadas de guitarras se fundem a uma multidão gritando, explosões e efeitos abstratos, criando um verdadeiro clímax de tensão. 

"Hands of the Priestess Part II" aprofunda ainda mais a atmosfera etérea introduzida na primeira parte ao trazer uma sonoridade ainda mais suave e delicada. Os teclados adicionam uma sutil luminosidade ao tom melancólico e sombrio do álbum, equilibrando mistério e tristeza sem dissipar completamente a aura introspectiva da composição. Embora tenha somente pouco mais de um minuto e meio, funciona como um complemento perfeito para a Parte I, encerrando-a com elegância e coesão. 

"The Hermit" traz uma sonoridade suave e melancólica, mas com algo que era novidade na época, o vocal de Steve Hackett, que inclusive se revela surpreendentemente competente e emotivo, acrescentando uma camada adicional de profundidade à música. Uma voz sutil e introspectiva que se se entrelaça perfeitamente com a guitarra que continua a impressionar com sua habilidade única de transmitir vários sentimentos. O título da faixa evoca a imagem de um eremita solitário, enquanto a música com sua atmosfera etérea remete a um tipo de conto de fadas sombrio. É possível perceber algo no som dessa peça que antecipa a essência de A Trick of the Tail.

"Star of Sirius" é uma das faixas mais complexas e dinâmicas do disco, começando de forma suave, mas logo se transformando em uma montanha-russa sonora. Os vocais de Phil Collins brilham como nunca, talvez porque ele esteja se expressando de forma autêntica, sem tentar emular o estilo de Peter Gabriel. Sua performance aqui é íntima e poderosa e traz uma nova camada de humanidade à música. A transição para um estilo mais jazzy e violento é abrupta, marcada pelo teclado que prepara o terreno para uma nova direção sonora. A guitarra de Hackett que constrói uma parede de som imponente encaixa-se perfeitamente nesse novo contexto ao criar uma tensão crescente. A faixa então se desvia novamente, agora adotando uma sonoridade mais suave onde os teclados e flautas se combinam de maneira extremamente harmoniosa antes de nos levar a uma complexa seção de bateria, Mellotron e mais uma vez a guitarra de Steve.

"The Lovers" é uma breve e suave faixa acústica que oferece um merecido descanso após a complexidade vibrante de "Star of Sirius". Com sua simplicidade delicada a música cria um espaço de reflexão e proporciona um alívio de intensidade e que serve como uma ponte emocional que prepara o terreno para o clímax final do álbum

O álbum se encerra de maneira apoteótica com "Shadow of the Hierophant", um verdadeiro épico que é a culminação de tudo o que foi construído ao longo do disco. A música começa suavemente com os vocais etéreos e cristalinos de Sally Oldfield que conduz o ouvinte por variações musicais intrincadas, ora delicadas e ora poderosas. Sua voz com sua qualidade única cria uma jornada sensorial que se desenrola de maneira quase mágica.

À medida que a música avança, uma passagem instrumental dramática interrompe a voz de Sally pela primeira vez, oferecendo um contraste que prepara o terreno para as próximas transformações. Essa alternância entre os vocais e a instrumentação se repete em momentos distintos, até que em um pico quase psicodélico, toda a banda se junta em uma explosão sonora que leva a música a um novo nível de intensidade.

O ponto de virada chega quando Steve Hackett introduz uma mudança de andamento, conduzindo a faixa para sua seção final, onde a complexidade se desdobra em uma sequência de atmosferas que se alternam e se complementam de uma maneira impecável. O clímax do álbum é de uma dramaticidade impressionante, com a guitarra de Hackett e seu estilo único se misturando ao Mellotron, sinos e o restante da banda, criando desta forma um dos finais de música mais emotivamente espetaculares que conheço. 

Ao longo de cinco décadas de uma prolífica carreira solo, Steve Hackett presenteou o universo da música com inúmeros álbuns de altíssima qualidade, cada um refletindo sua criatividade inesgotável e sua habilidade ímpar como compositor e instrumentista. No entanto, nenhum deles conseguiu alcançar a perfeição singular de seu álbum de estreia. Voyage of the Acolyte permanece uma obra-prima insuperável, um trabalho que transcende o tempo e continua a ser uma referência dentro do rock progressivo. Sua musicalidade é refinada, requintada e de extremo bom gosto, sendo executada por músicos excepcionais que ajudaram a dar vida a uma visão artística única.

Mais do que apenas um grande disco, Voyage of the Acolyte representa um marco na história do gênero, sendo também um testemunho do talento de Hackett e de sua capacidade de criar atmosferas sonoras envolventes e repletas de emoção. Um trabalho magistral do mais prolífico músico solo a emergir de uma das maiores bandas de rock progressivo dos anos 70.

NOTA: 10/10

Gênero: Rock Progressivo

Faixas:

1. Ace of Wands - 5:23
2. Hands of the Priestess, Part I - 3:28
3. A Tower Struck Down - 4:53
4. Hands of the Priestess, Part II - 1:31
5. The Hermit - 4:49
6. Star of Sirius - 7:08
7. The Lovers - 1:50
8. Shadow of the Hierophant - 11:44

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

House Of Lords - Full Tilt Overdrive (2024)


O House Of Lords retorna em grande estilo com Full Tilt Overdrive, seu décimo quarto álbum de estúdio, provando mais uma vez que a banda é sinônimo de consistência e qualidade no hard rock. Liderados pelo icônico vocalista e produtor James Christian, o grupo entrega um disco enérgico e impecavelmente produzido, repleto de faixas memoráveis que reafirmam seu status como uma das forças mais resilientes do gênero.

Desde sua estreia homônima em 1988, o House Of Lords consolidou uma base de fãs leal e uma reputação sólida como uma banda que combina melodia, poder e sofisticação. A formação atual conta com James Christian (vocais e baixo), o virtuoso guitarrista Jimi Bell, o tecladista e compositor Mark Mangold e o baterista Johan Koleberg. Juntos, esses músicos criaram um trabalho coeso e inspirado, dando continuidade ao legado da banda sem perder a relevância.

O disco abre com a intensa "Crowded Room", que dá o tom do álbum com sua pegada agressiva e riffs poderosos. Na sequência, "Bad Karma" se destaca como um single irresistível, com um refrão pegajoso e um solo espetacular de Jimi Bell. A faixa-título, "Full Tilt Overdrive", é uma explosão de energia, impulsionada por guitarras incendiárias e uma performance vocal de tirar o fôlego.

Outro momento marcante é "Taking The Fall", uma balada de estrutura impecável que remete ao estilo de bandas como Gotthard, com sua melodia envolvente e um toque emotivo que cativa instantaneamente. Já "Not The Enemy" combina peso e melodia de maneira brilhante, enquanto os teclados de Mangold adicionam uma profundidade única à faixa.

O álbum também se aventura em territórios menos convencionais com "You're Cursed", que começa com um clima cinematográfico antes de explodir em um hard rock vibrante, e "State of Emergency", que aborda temas sociais com uma combinação de letras impactantes e uma base instrumental poderosa. O encerramento épico fica por conta de "Castles High", uma faixa de quase 10 minutos que transporta o ouvinte para uma narrativa quase fantástica, culminando em um clímax musical memorável.

A produção cristalina, a cargo de James Christian e Mark Mangold, merece elogios. Cada instrumento encontra seu espaço na mixagem, permitindo que os detalhes das composições sejam apreciados. Os solos de guitarra de Jimi Bell, em especial, são um show à parte, demonstrando técnica e emoção em igual medida. E a voz de Christian é simplesmente perfeita para o som da banda.

Full Tilt Overdrive foi lançado no Brasil pela Shinigami Records, facilitando o acesso dos fãs brasileiros a este trabalho incrível. Para os amantes do hard rock, este é um álbum essencial que mantém viva a chama do House Of Lords e reforça sua posição como uma das grandes bandas do gênero. Indispensável!

NOTA: 9/10

Gênero: Hard Rock

Faixas:
1. Crowded Room (4:45)
2. Bad Karma (4:11)
3. Cry Of The Wicked (5:09)
4. Full Tilt Overdrive (4:57)
5. Taking The Fall (4:29)
6. You're Cursed (5:34)
7. Not The Enemy (4:09)
8. Don't Wanna Say Goodbye (4:01)
9. Still Believe (4:37)
10. State Of Emergency (4:47)
11. Castles High (9:25)

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e mídia física através da Shinigami Records.

60 anos de: A Love Supreme - John Coltrane (1965)

                        Com certeza que A Love Supreme é um dos álbuns mais brilhantes da história do jazz instrumental e ao mesmo tempo uma...