Hounds of Love é o quinto disco da cantora, compositora e produtora britânica Kate Bush, sendo muitas vezes considerado sua obra-prima e um marco que representa um retorno brilhante após três anos desde o lançamento do excelente The Dreaming (1982), um álbum experimental e audacioso que apesar de também aclamado pela crítica, teve uma recepção comercial modesta. Com Hounds of Love, Bush não apenas reafirmou seu talento visionário, mas também alcançou um nível de sucesso sem precedentes em sua carreira.
O álbum se destacou por sua abordagem ao equilibrar experimentação artística e acessibilidade pop que acabaria conquistando tanto a crítica especializada quanto o público como um todo. Seu single principal, Running Up That Hill (A Deal with God) se tornou-se um dos maiores clássicos da artista e demonstrou sua habilidade de unir letras introspectivas a uma sonoridade atmosférica e envolvente.
A estrutura do álbum também reforça sua singularidade ao ser dividido em duas partes distintas, com o lado A – que leva o nome do disco - oferecendo músicas mais diretas e radiofônicas, enquanto que o lado B, intitulado The Ninth Wave traz faixas que juntas geram a suíte conceitual que narra a história de uma pessoa à deriva no mar que luta pela sobrevivência enquanto passa por visões e reflexões. Esse formato narrativo aliado ao uso pioneiro de samplers e uma produção sofisticada fez de Hounds of Love um dos álbuns mais influentes da música pop experimental.
Após o lançamento de The Dreaming, Bush optou por se afastar temporariamente do cenário musical. Em vez de seguir imediatamente para um novo projeto sob a pressão da indústria fonográfica, ela tomou a decisão estratégica de construir seu próprio estúdio de gravação, o Solstice Studios em sua casa na zona rural da Inglaterra. Essa mudança representou um ponto importante em sua carreira, pois lhe proporcionou um nível de liberdade criativa inédito. Livre das restrições impostas pelos estúdios comerciais e das limitações de tempo e orçamento, Bush explorou novas possibilidades sonoras com a calma que nunca pode ter antes. Esse ambiente íntimo e controlado foi fundamental para a concepção de Hounds of Love.
Vale destacar também, que a tecnologia desempenhou um papel essencial na construção do sonora do disco ao permitir que Kate expandisse ainda mais os limites da experimentação musical. Um dos elementos centrais dessa abordagem foi o uso do Fairlight CMI, um dos primeiros sintetizadores digitais equipados com sampler e que revolucionou a maneira como os artistas podiam manipular e integrar sons em suas composições. Para Bush não chegava a ser algo inédito, afinal, ela já havia explorado esse instrumento em The Dreaming, porém, foi em Hounds of Love que ela o utilizou de forma mais requintada.
O álbum realmente se destaca em como consegue mesclar instrumentos acústicos e eletrônicos ao fundir cordas, percussões tribais e vozes etéreas com camadas sintéticas geradas pelo Fairlight CMI. A oposição que ocorre entre o orgânico e o tecnológico resultou em uma sonoridade envolvente que se tornou uma das marcas registradas do disco. Além disso, Bush também utilizou gravações em fita manipuladas sobrepondo e distorcendo elementos sonoros para alcançar efeitos imersivos.
- Hounds of Love -
"Running Up That Hill (A Deal with God)" é o single principal do disco e um dos maiores sucessos da carreira de Kate Bush, tanto em impacto cultural quanto em desempenho comercial. A música traz uma abordagem poética sobre empatia e compreensão nas relações humanas. A escolha do título original, A Deal with God, foi considerada controversa por algumas gravadoras, levando Bush a acrescentar Running Up That Hill para evitar possíveis restrições comerciais. A faixa se destaca por sua batida hipnótica que se sustenta por uma percussão eletrônica e sintetizadores etéreos que criam uma atmosfera emocionalmente envolvente. O vocal característico de Bush eleva ainda mais a carga dramática da canção, o que a torna uma experiência sonora única. Não tem como deixar de destacar também que apesar de já ser um clássico desde seu lançamento, a música teve um ressurgimento em 2022 quando foi utilizada em uma cena icônica de Stranger Things.
"Hounds of Love", a faixa-título é uma das músicas mais emblemáticas do disco, tanto pela sua intensidade sonora quanto pela profundidade lírica. A instrumentação é rica e densa, além de ser marcada por uma bateria intensa e que cria uma sensação de urgência, enquanto as cordas adicionam uma dimensão quase cinematográfica à música. A estrutura musical, com suas transições dinâmicas e arranjos complexos reflete perfeitamente o tema central da letra que explora o medo e o desejo que surgem quando se entrega ao amor de forma mais intensa e vulnerável.
"The Big Sky" apresenta um dos momentos mais dinâmicos do álbum. Com um ritmo acelerado, pulsante e uma vibração dançante, a canção reflete a celebração da vastidão do céu e a maravilha da natureza. Kate por meio de sua performance vocal transmite uma sensação de liberdade. O uso de percussão animada e sintetizadores alegres confere à música uma sensação como a de uma observação do céu que convida o ouvinte a refletir sobre as infinitas possibilidades do universo. A letra também tem um tom de introspecção, mas com uma abordagem leve ao capturar a simplicidade e a maravilha de olhar para cima e perceber a vastidão da vida e do mundo natural.
"Mother Stands for Comfort" traz com ela um dos momentos mais atmosféricos do disco ao se desenvolver dentro de uma sonoridade etérea construída por meio de camadas de sintetizadores que criam uma sensação de imersão, quase como se estivéssemos sendo envoltos por um manto de névoa. O ritmo tranquilo e a voz suave de Kate adicionam uma qualidade hipnótica. A letra sugere um relacionamento entre mãe e filho, mas a natureza desse vínculo é ambígua e desconcertante. Embora a mãe seja retratada como um símbolo de conforto e refúgio, algo em sua proteção parece suspeito. Um belo contraste entre melodia serena e tensão emocional.
"Cloudbusting" é uma das faixas mais emocionais de Hounds of Love, com uma narrativa comovente inspirada na história real de Wilhelm Reich, um psicanalista e cientista controverso, e seu filho Peter. A canção é uma recriação de um momento traumático da infância de Peter quando ele testemunhou seu pai sendo perseguido e preso pelas autoridades, após ser alvo de investigações por suas ideias não convencionais sobre energia e a psique humana. Reich foi preso em 1956 e sua história de perseguição política e científica é o pano de fundo para “Cloudbusting”. O arranjo é lindíssimo e traz um trabalho intenso e dramático de cordas, a bateria é envolvente e há uma excelente força rítmica, enquanto isso, os sintetizadores dão uma qualidade transcendental à música, como se o ouvinte estivesse sendo transportado para dentro da mente de Peter que está imersa em uma realidade de confusão e angústia.
- The Ninth Wave –
“And Dream of Sheep" já começa a suíte por meio da representação de um momento de exaustão e desespero, onde a protagonista está sozinha no oceano cercada pela escuridão e pelo frio, enquanto estabelece um estado emocional que mostra sua luta entre o desejo de sobreviver e a tentação de se render ao sono. Musicalmente possui uma textura suave que reforça a ideia de um sonho. O arranjo é minimalista e apresenta piano, sintetizadores e vocais quase sussurrados. Essa leveza instrumental cria uma dualidade com a ansiedade da letra e intensifica o contraste entre a esperança e o medo da morte.
“Under Ice” é uma peça minimalista e sombria construída em torno de cordas sintetizadas. Os acordes criam uma pulsação rítmica irregular e uma instrumentação fria e mecânica que parece querer reforçar a sensação de um ambiente hostil. Aqui Kate canta de uma maneira mais tensa e contida, aumentando dessa forma a dramaticidade da música que liricamente evoca a sensação de aprisionamento e desorientação. A personagem parece sonhar que está patinando sobre um lago congelado, mas logo percebe algo ou alguém preso sob o gelo.
"Waking the Witch" possui uma letra que descreve uma mulher sendo julgada, acusada e condenada como bruxa. A protagonista é interrogada e as palavras que a cercam são ameaçadoras e carregadas de uma sensação de perseguição. Musicalmente começa com um piano calmo e vozes suaves, mas rapidamente se transforma em um caos sonoro com vocais distorcidos, batidas intensas e vozes ameaçadoras que parecem representar inquisidores. Possui uma abordagem fragmentada e experimental, além de mudanças bruscas de ritmo e vocais sobreposto.
"Watching You Without Me" carrega uma atmosfera misteriosa criada por um clima melancólico. A base feita pelos sintetizadores são deliciosas, enquanto a bateria eletrônica minimalista ao fundo traz uma espécie de balanço hipnótico. Os vocais parecem soar ao longe, o que reforça o conceito da letra que tem a ideia de transmitir um profundo senso de frustração e impotência. A narradora parece estar separada de seu amado enquanto o observa sem que ele possa vê-la ou ouvi-la.
"Jig of Life" adota uma musicalidade mais folclórica e celta através de arranjos de violão, uma percussão alegre e uma melodia enérgica que evoca a imagem da clássica festa da terceira classe do Titanic em que o Jack dança com a Rose. Essa sonoridade mais vibrante contrasta com a tensão das faixas anteriores. Kate canta de uma maneira animada e bastante expressiva uma música que carrega uma letra mais otimista ao falar sobre o impulso de viver, de lutar e de se renovar, além de transmitir uma sensação de esperança e de estar prestes a romper com o passado.
“Hello Earth”, musicalmente é um dos momentos mais épicos do disco. Inicialmente entrega uma sonoridade suave e misteriosa, mas não demora muito e ela se eleva para uma seção orquestral incrível que inclui alguns vocais em coro e belíssimos arranjos de cordas. Os vocais suaves de Bush criam uma sensação de introspecção e solidão, enquanto a instrumentação evoca imensidão e até um pouco de misticismo. Sua letra representa um momento de transcendência e contemplação, onde a protagonista exausta e à beira da morte entra em um estado de quase sonho.
"The Morning Fog" tem uma sonoridade reconfortante com um ritmo animado e arranjo de piano e cordas que cria uma sensação de serenidade. A melodia é do tipo acolhedora e os vocais de Kate são suaves e delicados quase como um suspiro de alívio. A música traz uma sensação de paz por meio de uma estrutura simples e que encerra a suíte de forma otimista. Diferentemente das faixas anteriores, marcadas pelo desespero, medo e alucinações, "The Morning Fog" traz uma sensação de renascimento e esperança. Após a longa luta contra a morte, a protagonista parece finalmente emergir para a superfície e encontrar a salvação.
Na época de seu lançamento, Hounds of Love foi recebido com aclamação tanto da crítica quanto do público e consolidou Kate Bush como uma das artistas mais inovadoras de sua geração. O álbum demonstrou não apenas sua habilidade única como compositora e produtora, mas também sua capacidade de equilibrar experimentação e acessibilidade ao criar um trabalho que era simultaneamente ousado e comercialmente viável.
A prova disso é que o disco estreou diretamente no topo das paradas britânicas, desbancando ninguém mais e ninguém menos que Like a Virgin da Madonna, garantindo a Bush seu segundo álbum número um no Reino Unido. O sucesso foi impulsionado principalmente pelo single "Running Up That Hill (A Deal with God)" e que se tornou um de seus maiores hits. A música não apenas conquistou o público europeu, mas também abriu portas para Bush no mercado estadunidense, onde alcançou posições elevadas na Billboard Hot 100, algo que até então ela não havia conseguido com suas obras anteriores.
Além do desempenho comercial, vale destacar também que o álbum foi celebrado pela crítica por sua produção inovadora, sua fusão de elementos eletrônicos e acústicos e sua abordagem cinematográfica das composições. O lado A do disco, repleto de faixas mais diretas e acessíveis, foi elogiado por sua força melódica e riqueza instrumental, enquanto isso, o lado B impressionou pela ambição conceitual e sua narrativa musical envolvente.
Ao longo dos anos, Hounds of Love só cresceu em prestígio, sendo frequentemente citado como um dos álbuns mais influentes da década de 1980 e um marco na música pop experimental. Seu impacto se estendeu por décadas, inspirando até hoje diversos artistas e resgatando novas gerações de ouvintes, especialmente após o ressurgimento de "Running Up That Hill" nas paradas em 2022 graças à sua inclusão na série Stranger Things. Com isso, o legado do álbum foi ainda mais reforçado, reafirmando sua posição como uma das obras mais visionárias e atemporais da história da música popular. Uma obra-prima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário