Sempre que penso em um disco fora de série do Milton Nascimento, o primeiro nome que me vem à mente é Clube da Esquina. Não é por acaso, afinal, eu o considero uma das maiores obras-primas da história da música mundial. No entanto, acredito ser igualmente importante lembrar de outros álbuns emblemáticos do nosso querido Bituca. Minas, por exemplo, que em 2025 fará 50 anos é um desses trabalhos que merecem destaque, pois também é uma joia lapidada durante o período mais criativo de sua carreira e que é carregada de sutilezas e profundidade do começo ao fim.
Reduzir a música de um álbum como Minas a apenas MPB seria um simplismo que não faz jus à sua grandeza. Sua estrutura intrincada revela de forma notável a fusão de elementos de jazz com toques sutis e preciosos de rock progressivo. Essa combinação não é apenas um detalhe técnico, mas evidencia o coração pulsante do disco e que é um dos seus maiores trunfos. A genialidade de Minas reside no equilíbrio magistral entre o experimental e o popular, criando uma sonoridade que transcende rótulos e se afirma como uma expressão musical bastante original.
Cada arranjo foi tratado com um cuidado quase artesanal, com Wagner Tiso assumindo a direção musical em grande parte do disco. No entanto, o brilho do álbum também se deve à presença de uma constelação de talentos que participaram do projeto. Nomes como Beto Guedes, Nelson Angelo, Toninho Horta, Paulinho Braga, Novelli, entre outros, contribuíram para dar vida a Minas, com cada um deixando sua marca.
Liricamente, as músicas exploram uma rica variedade de temas, transitando com delicadeza entre reflexões sobre liberdade, amor, meio ambiente, nostalgia e os conflitos intrínsecos à condição humana. Porém, é a profundidade emocional e a sensibilidade poética com que abordam questões universais que merecem o maior destaque no disco. Muitas vezes, as letras combinam metáforas bem elaboradas até mesmo com críticas sociais sutis.
A faixa título inicia o disco é uma verdadeira joia que é enriquecida por belíssimas harmonias vocais que parecem flutuar sobre cada nota. Introspectiva, ela se destaca por sua de música regionalista e sutis acenos ao jazz, tendo como resultado uma peça de atmosfera delicada e ao mesmo tempo profundamente evocativa. “Fé Cega, Faca Amolada” possui um ritmo vibrante e contagiante que contrasta com a profundidade reflexiva de sua letra. A canção aborda os percalços da vida e traz uma crítica incisiva à falta de discernimento e aos perigos de seguir caminhos sem reflexão. A interpretação de Milton parece carregar uma sensação de urgência, como se fosse um chamado à consciência. Musicalmente se destaca pela densidade de sua sonoridade que flerta com um peso incomum dentro do contexto do álbum, sendo sustentada por uma melodia rica em camadas.
“Beijo Partido”, por meio de uma melodia suave e delicada, Milton canta em um tom melancólico o sentimento agridoce de perda e despedida. Os arranjos capturam com perfeição a dualidade entre a beleza e a tristeza de um amor não correspondido. A letra na interpretação de Milton tornando-se um dos momentos mais emotivos do álbum. Uma prova do talento de um dos maiores - para mim o maior - nomes da música brasileira. “Saudade dos Aviões da Panair” é daquelas canções que despertam um profundo sentimento de nostalgia. Com uma atmosfera simples e aconchegante a peça parece abraçar o ouvinte com um sentimento de doçura e melancolia. Sua melodia delicada e despretensiosa intensifica essa conexão emocional.
“Gran Circo” é uma das faixas mais experimentais do disco. As vocalizações de Fafá de Belém pontuando momentos cruciais da música são um deleite que tem a capacidade de adicionar uma enorme camada de beleza e intensidade emocional e que eleva a composição. Uma música que transita brilhantemente entre o incomum e o sublime. “Ponte de Areia” é uma música que encanta com sua melodia suave e cativante. Sua harmonia plácida envolve delicadamente o ouvinte, enquanto o vocal emotivo de Milton imprime vida por meio de um lirismo tocante. No geral é uma exímia combinação entre simplicidade e profundidade e que mais uma vez prova o talento incomparável de Milton em transformar emoções em música.
“Transtevere”, quando as influências jazzísticas e a música brasileiro se abraçam e “dançam” em perfeita harmonia. A faixa exala uma atmosfera envolvente de mistério. Seu nome é uma referência ao icônico bairro de Roma. Tudo isso acaba tendo a capacidade de transmitir imagens de um encontro cultural onde tradição e modernidade se encontram em um delicado equilíbrio sonoro. “Idolatrada” direciona o disco para um clima mais edificante por meio de um ritmo mais animado, cheio de energia e repleto de vitalidade. Enquanto isso, oferece uma reflexão sobre a idealização do ídolo e traz uma perspectiva mais humana e realista.
“Leila (Venha Ser Feliz)” traz uma melodia divertida e apaixonante e que se expande de forma envolvente à medida que a música se desenvolve. A letra, embora simples e repetitiva – centrada basicamente no título –, consegue transmitir uma sensação de acolhimento e convite. Mesmo em sua simplicidade, a canção é uma celebração calorosa da felicidade e do afeto. “Paula e Bebeto”, graciosa e melancólica narra a história de um casal que vive um amor alvoroçado. Os arranjos são muito bem trabalhados e criam uma atmosfera de introspecção e reflexão. É uma peça que fala de amor em sua forma mais humana, enquanto entrelaça beleza e fragilidade.
“Simples” encerra o álbum brilhantemente, proporcionando um desfecho pacífico, sereno e profundamente significativo. Com uma sonoridade serena e intimista, a música celebra a beleza que reside nas pequenas coisas da vida. Soa como um convite ao ouvinte para desacelerar o ritmo e apreciar a simplicidade, fechando o disco com uma mensagem de quietude e contemplação.
Enfim, Minas é um disco de sensibilidade rara, onde cada detalhe foi extremamente pensado para criar uma obra atemporal. Nada está fora do lugar e cada elemento se complementa de maneira harmoniosa e que resulta em um dos trabalhos mais emblemáticos de toda a MPB. Mais do que uma simples coleção de músicas, o álbum se apresenta como uma experiência quase terapêutica, além de uma jornada contemplativa e acolhedora que envolve o ouvinte de forma sublime. Minas é a arte da música em seu estado mais puro.
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