A primeira vez que meus olhos pousaram sobre esse disco, ele estava tranquilamente repousando na seção de jazz de um sebo em Brasília. Era um canto daquele local que eu confesso que raramente explorava com atenção, afinal, minha relação com o jazz na época era um tanto reticente, especialmente com aquele som mais cru e despojado que eu imaginava dominar completamente aquela área. Por isso eu passava por ali com certa indiferença, acreditando que nada seria capaz de despertar o meu interesse ou me envolver de verdade.
Mas como eu estava ali vagando por aquela seção quase por impulso, quando um disco em particular chamou minha atenção. Ao pegá-lo e começar a ler os créditos, confesso que fiquei completamente incrédulo. Era como se aquele vinil guardasse uma verdadeira constelação de talentos: Bill Bruford, Phil Collins, Cozy Powell, Brian Eno, Chris Spedding, Manfred Mann, Gary Moore e como se não bastasse, havia até o excêntrico Viv Stanshal nas narrações. E esses eram apenas alguns dos nomes destacados.
Mas algo eu já sabia desde o momento em que segurei o disco: pelo título e pela arte da capa, Peter and the Wolf era uma releitura contemporânea da obra clássica de Sergei Prokofiev, composta em 1936. A composição original foi criada com um propósito didático e encantador: apresentar às crianças os diferentes instrumentos da orquestra, mas associando cada personagem a um timbre específico. Assim, Pedro era representado pelo quarteto de cordas, o Pato ganhava vida através do oboé, o Gato pelo clarinete, e o Avô era personificado pelo fagote e assim por diante.
Foi então que na década de 1970, marcada pelo auge da experimentação musical, surgiu a ousada ideia de reinterpretar Peter and Wolf em um formato inovador para a época. O álbum lançado em 1975 encapsula perfeitamente o espírito aventureiro daquele momento, mesclando a música clássica com estilos contemporâneos, como o rock progressivo, o jazz rock, o jazz fusion e até pinceladas de música eletrônica. Essa abordagem não apenas reimaginou a obra de Prokofiev, mas também a transportou para um território inexplorado, onde tradição e vanguarda não apenas se encontraram, mas se abraçaram harmonicamente.
As duas mentes por trás da produção do disco eram de Robin Lumley e Jack Lancaster, ambos nomes de destaque no cenário experimental britânico da época. Eles não apenas idealizaram essa releitura, mas também, como já dito, tiveram a visão de reunir uma verdadeira constelação de músicos de ponta para dar vida à obra. Com um elenco estelar, a dupla garantiu que o álbum fosse muito mais do que uma simples adaptação, ele também se tornaria um marco de colaboração artística.
No entanto, algo deve ser dito, se você for alguém familiarizado com a versão original de Prokofiev e estiver esperando algo próximo a ela, é melhor revisitar as suas expectativas. Apesar de a estrutura da narrativa permanecer semelhante, essa releitura, obviamente, toma liberdades criativas mais ousadas. Aqui cada músico assume o papel de um personagem, mas os instrumentos utilizados são completamente diferentes dos da obra original. Não espere, por exemplo, encontrar oboés representando o Pato ou o quarteto de cordas evocando Pedro. Em vez disso, prepare-se para uma instrumentação reinventada e em muitos momentos, surpreendente. Mesmo com essas mudanças, o álbum encontra seu próprio equilíbrio, com arranjos impecáveis e vocais que se encaixam perfeitamente na proposta contemporânea, conferindo uma nova alma a uma história clássica.
No que diz respeito à representação dos personagens, a releitura faz escolhas intrigantes e inovadoras. Pedro, por exemplo, é traduzido pelas linhas melódicas modernas de guitarras e sintetizadores e que capturam sua coragem e determinação de maneira vibrante. O Gato, por sua vez, ganha vida através de linhas sinuosas de clarinete e harmonias ágeis e que refletem a sua astúcia e elegância. Já o Lobo, uma figura de maior ameaça, também é representado pela guitarra, mas de forma oposta a Pedro. Seu tom sombrio e ameaçador é evocado por riffs pesados e que são acompanhados de sintetizadores que criam uma atmosfera de suspense, tornando a figura do Lobo mais imponente e intimidadora.
Apesar de, como dito, ter visto Peter and Wolf pela primeira vez em uma seção de jazz de um sebo, é inegável que álbum transcende rótulos como jazz, rock ou progressivo, pois todos esses gêneros e estilos se entrelaçam de forma tão suave e natural que parece que foram criados para coexistir em perfeita harmonia. A fusão de influências não é apenas bem-vinda, mas essencial, pois cria uma sonoridade que flui sem esforço, como se cada elemento fosse parte de um todo cuidadosamente orquestrado. O resultado é uma obra em que o equilíbrio entre os diferentes estilos é incrível, permitindo que a música se destaque em sua excelência e sem perder a harmonia entre suas partes.
Pessoalmente, sou fascinado pela interpretação de Pedro feita por Manfred Mann. Sua abordagem é profundamente jazzística, mas consegue preservar ao mesmo tempo a essência clássica do personagem ao criar uma fusão belíssima entre os dois mundos. A faixa “Peter Themes” é uma das mais marcantes do disco, carregada de intensidade e emoção. No entanto, vale ressaltar o trabalho excepcional de Gary Moore e Chris Spedding, que assumem os papéis do Pato e do Lobo, respectivamente. A colaboração da dupla na faixa “Wolf and Duck” é simplesmente fenomenal, uma verdadeira obra-prima que combina virtuosismo e atmosfera de forma brilhante.
Também vale ressaltar que é impossível ignorar a contribuição fundamental de Viv Stanshall, vocalista e trompetista do The Bonzo Dog Doo Dah Band, cuja voz empresta uma credibilidade inconfundível ao álbum. Seu sotaque impecável dá vida ao narrador de forma única, como se ele tivesse abandonado seus dias de loucura e aventuras ao lado de Keith Moon, mas sem jamais perder seu senso de humor peculiar. Stanshall injetou uma irreverência sutil à sua interpretação, com direito a arrotos e frases satíricas que não só enriquecem a narrativa, mas também adicionam uma camada de charme excêntrico, fazendo com que sua presença fosse indispensável à atmosfera do disco.
Por fim, devo admitir que escrever sobre esse disco não é tarefa simples, pois ele está repleto de centenas de detalhes que merecem ser apreciados pelo ouvinte de forma pessoal e cuidadosa. Há muito mais a ser absorvido especialmente se o ouvinte tiver um bom domínio do inglês, já que as nuances na narração e nas letras adicionam camadas de profundidade à experiência geral. Porém, uma coisa é certa, sendo essa uma das maiores partes da diversão ao ouvir Peter and Wolf: a constante descoberta de novos elementos a cada vez que o disco é colocado para tocar é fascinante. Cada audição revela algo a mais, uma nova faceta da obra. Com uma atmosfera envolvente, uma narração impecável e uma musicalidade deslumbrante este é um álbum que sem dúvida se torna cada vez melhor com o tempo.
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