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sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

The Circle Project - Bestiario II (2024)

 


The Circle Project é um projeto espanhol idealizado por Ángel G. Lajarí – que não canta e nem toca nenhum dos instrumentos, mas se posiciona na produção, na criação de arte e design gráfico, além de ser o gerente do projeto. O som da banda se destaca pela sua abordagem criativa que combina muito bem literatura e uma ampla gama de gêneros musicais, com um enfoque especial no art rock. A proposta da banda é oferecer uma experiência musical que vai além da simples apreciação sonora. Suas composições não são apenas sofisticadas e elaboradas, mas também carregam narrativas literárias profundas e envolventes que capturam a imaginação e o coração de quem se deixa embarcar no mundo criado pelo grupo. Ao integrar elementos de storytelling com arranjos musicais sinfônicos, a banda proporciona uma imersão completa no universo das suas criações.

Considero a gênese do The Circle Project bastante curiosa. O conceito da banda surgiu a partir de uma série de discussões entre os membros do grupo espanhol no Facebook denominado Prog Circle. Este grupo, dedicado ao rock progressivo e seus diversos subgêneros, funcionou como um ponto de encontro virtual para entusiastas da música progressiva. E foi nesse espaço que a paixão pela música encontrou um terreno fértil, permitindo que ideias criativas fossem compartilhadas e exploradas. As conversas e interações dentro do grupo não apenas fomentaram a troca de influências e experiências, mas também ajudaram a moldar a visão e a identidade do projeto que estavam prestes a iniciar.

Bestiario II é o segundo álbum do grupo, e como o próprio nome sugere, dá continuidade à temática explorada em seu antecessor. O conceito permanece centrado em uma fascinante coleção de descrições de criaturas, sejam elas reais ou mitológicas. Cada música funciona como uma entrada em um bestiário sonoro, onde melodias e arranjos muito bem compostos evocam a natureza, o mistério e a magia que envolvem esse assunto. Assim, Bestiario II não apenas complementa o trabalho anterior, mas também expande o universo sonoro e imaginativo do grupo.

Ainda que cada música tenha os seus méritos e valem apena, vou comentar sobre as músicas que mais gostei. Antes, por meio de um Manual De Criptozoología, uma voz nos dá as boas-vindas a essa nova viagem por esse universo fascinante e proporcionada pelo grupo: Um novo livro esperado chegou em nossas mãos. Voltaremos a viajar no tempo e no espaço com animais impossíveis, coloridos e arcanos, de terras distantes e oceanos passados. Para ouvir suas canções, abramos novamente o bestiário. Após essa narração introdutória, o disco começa por meio de “Mantícora”, uma criatura mitológica de origem persa, posteriormente incorporado à mitologia grega e que tem uma cabeça de homem, corpo de leão e cauda de dragão ou escorpião. O violão inicia com um deslizar solitário, mas logo outros instrumentos entram em cena, cada um trazendo sua própria cor e textura, enriquecendo a composição e criando uma harmonia que evolui gradualmente. Interessante uma música tão delicada para simbolizar uma criatura tão feroz. A ideia pode ser a de explorar uma narrativa sobre a coexistência de força e delicadeza, ou mesmo sobre a natureza enganosa das aparências.

É uma espécie de lula gigante que vive nas profundezas abissais. O tamanho excessivo de seus tentáculos cria grandes redemoinhos – semelhantes aos de Caríbdis no Estreito de Messina – e é capaz de afundar barcos. Já mencionado em bestiários medievais e por Jules Verne, hoje representa mais um mistério do oceano, talvez menos conhecido do que o nosso sistema solar. Com essas palavras, "Architeutis Dux -Kraken" nos é apresentada. A produção sonora é muito bem projetada para refletir a vastidão e a escuridão das águas profundas. Os arranjos experimentais são ricos em texturas e camadas, criando um senso palpável de profundidade e complexidade que é emblemático das lendas que cercam essa criatura.

“Pardus Alatus Nero”, um felino voador implacável e imponente, descrito na narração que antecede a música como, nobre, forte e musculoso, capaz de lançar-se ao oceano durante seus voos para caçar focas, ursos polares e até mesmo lobos marinhos. Ele desce até as profundezas marinhas em busca de um parceiro, e uma vez que encontra seu objeto de amor platônico, nunca o esquece, apesar de sempre retornar ao seu lugar de origem. Começa de forma serena, quase onírica. O violão o o hulusi – instrumento chinês de sopro - dominam a peça por um bom tempo, até que há uma mudança de direção com a entrada da seção rítmica e guitarra elétrica, trazendo energia e peso para a peça. Essa mudança de sonoridade, pode ser visto como o momento que a criatura revela sua verdadeira natureza, deixando a calmaria para assumir uma presença dominante e ameaçadora.

“Meiga”, aqui a banda parece está focada apenas em um tipo de meiga, porém, é bom deixar claro que as meigas podem ser divididas em diferentes tipos, como as "meigas chuchonas," que sugam a energia vital das pessoas, as "meigas de mal," que são mais maléficas e citadas na narração, além das "meigas boas" ou "meigas de bien" que são consideradas curandeiras ou protetoras. Por meio de uma sonoridade delicada produzida por teclados em camadas e violão, deitam alguns vocais emotivos que cantam sobre a dor causada por uma mulher que esmagou seu coração e lançou um feitiço sobre ele. A cominação da música e a sua narração, que de certa forma, pode ser um simples efeito de uma manipulação emocional, aqui ganha uma conexão com algo mais amplo e misterioso.

“Rainbow Leprechaun”, os Leprechaun são criaturas que têm suas raízes na mitologia irlandesa, onde são conhecidos como pequenos seres encantados, muitas vezes descritos como travessos e solitários e que guardam potes de ouro no final do arco-íris. A ideia do "Rainbow Leprechaun" é uma evolução dessa tradição, incorporando a magia e a cor vibrante dos arco-íris. A música começa com uma atmosfera grandiosa e sombria, marcada por arranjos sinfônicos que criam uma sensação de mistério e profundidade. A transição ocorre com a introdução de uma bateria de estilo militar acompanhada pelo baixo, que conduz a peça a um território mais robusto na quantidade de instrumentos utilizados. Segue-se um breve solo de escaleta, seguido por um de guitarra. Após esse momento de destaque, a música retorna a uma sonoridade serena, guiada pela flauta delicada e mantendo essa tranquilidade até o desfecho. Nem sempre é fácil achar uma relação da música e a criatura, mas ao menos a atmosfera grandiosa e sombria no início, pode ilustrar o Rainbow Leprechaun, uma figura que carrega um mistério e uma aura enigmática.

“Tardo”, não confundir com o ser lendário de mesmo nome, mas da mitologia dos povos indígenas da região da Amazônia. Aqui se trata do Tardo da Galícia, que é frequentemente retratado como uma entidade que vive nas áreas rurais e florestais. Pode ter uma aparência que mistura elementos humanos e animais, como orelhas pontudas ou olhos brilhantes. Gosta de aprontar com os seres humano, fazendo, por exemplo, com que se percam em florestas ou sintam sensações ruins como dores e pesadelos. Possui uma musicalidade bastante forte, principalmente por meio de uma seção rítmica enérgica e teclados sinfônicos. Enquanto isso, o vocal se apresenta da perspectiva do Tardo, ou seja, como uma figura poderosa e ameaçadora, que manipula e domina os medos e ansiedades da pessoa a quem se dirige. A sensação sinfônica de grandiosidade e mistério da música acaba ressoando com a natureza folclórica e enigmática da criatura.

 "Papilio Evanescens" é uma borboleta que tem a habilidade de desaparecer. Inicialmente uma lagarta planta, seu desaparecimento abrupto após se transformar em borboleta também costuma ser associado a características místicas, como a capacidade de viajar entre mundos ou dimensões. Musicalmente, a primeira parte da canção se destaca por sua atmosfera etérea, onde os vocais femininos sobrepostos – ainda que sejam da mesma vocalista - flutuam com uma delicadeza celestial. No núcleo da música, uma flauta encantadora surge acompanhada por batidas percussivas que trazem uma leveza rítmica. Então que a seção rítmica emerge com mais vigor, impulsionando a canção para um caminho de intensidade. Essa mudança de direção é marcada por um solo de teclado, seguido por um solo de guitarra, onde ambos edificam a composição. Dessa forma, Papilio Evanescens se torna uma metáfora viva para a música, personificando a transição da suavidade para a intensidade, da fragilidade para a força, tudo enquanto mantém sua natureza graciosa e transcendental. Além disso, sua forma de existir e desaparecer, nos faz questionar por meio da parte final de sua letra, sua ausência nos obriga a perguntar se há algo além ao morrer, sobre a morte e o mistério do que vem depois, levando à ponderação sobre a existência de uma vida após a morte ou uma continuação em outro plano.

“Draculis Scarabus” dá nome a uma criatura que exibe uma carapaça negra e reluzente e que é cuidadosamente adornada com marcas escarlates, evocando a imagem de olhos vigilantes ou garras afiadas. Esses detalhes não só acentuam, mas também amplificam sua aparência intimidadora. Inicialmente, algumas notas solitárias do baixo são acompanhadas por uma sonoridade que parece ter sido tirada de algum filme de terror dos anos 70, então a música entra em uma linha mais eletrônica, porém, ainda mantendo o toque atmosférico, que a essa altura também dá à faixa algumas leves pinceladas de psicodelia. Mais perto do fim, a bateria se intensifica, onde junta dos demais instrumentos, cria um clima quase que angustiante. Considero está a música que mais se aparenta com a criatura que representa, tendo o seu som convertido em uma essência sombria e experiência horripilante, tal qual a de se deparar com a criatura mencionada.

Assim como aconteceu com o começo do disco, no seu final também há uma breve mensagem do Manual De Criptozoología, já deixando em aberto que uma terceira parte pode acontecer: A história termina, segundo bestiário, treze outros novos seres povoam nossa imaginação. O mapa de Urbano Monte serviu como um quadro para outra grande viagem por lugares estranhos e novos. Vamos fechar este manuscrito agora, talvez outro esteja esperando.

Bestiário II é um disco encantador, tecido com uma tapeçaria sonora rica e harmoniosa. O álbum se destaca pela sua melodia envolvente e pela harmonia delicada que permeia cada faixa, criando uma experiência imersiva e cativante. Vale destacar também, a maneira como a banda ocasionalmente se aventura por territórios mais pesados, com momentos de musicalidade intensa que contrastam de forma eficaz com a suavidade predominante.

Cada música parece capturar a essência da criatura que representa, proporcionando um retrato sonoro vívido e expressivo. A transição entre a suavidade e a intensidade é executada com classe, permitindo que o álbum conte histórias ricas e variadas, todas ancoradas em uma narrativa coesa e sensível. Por fim, Bestiário II é um convite para uma jornada através de um universo sonoro repleto de contrastes, onde a beleza melódica e a força musical se encontram em uma dança harmoniosa, sempre respeitando a mitologia e a imagem evocada por cada composição.

NOTA: 9.4/10

Gênero: Rock Progressivo

Faixas:

1. Manual De Criptozoología - Continuación (0:26)
2. Capítulo 9 Mantícora (4:33)
3. Capítulo 10 Diaemus Gravida (6:18)
4. Capítulo 11 Architeutis Dux - Kraken - (3:27)
5. Capítulo 12 Pardus Alatus Nero (4:24)
6. Capítulo 13 Homo Narcissus - Leno Litore, Assinus Facies - (8:59)
7. Capítulo 14 Meiga (4:22)
8. Capítulo 15 Rainbow Leprechaun (6:53)
9. Capítulo 16 Grifelino Coloris (5:18)
10. Capítulo 17 Tardo (6:18)
11. Capítulo 18 Narvalus Transeo (4:46)
12. Capítulo 19 Papilio Evanescens (6:04)
13. Capítulo 20 Draculis Scarabus (5:15)
14. Capítulo 21 Auxia (6:50)
15. Manual De Criptozoología - Final (0:27)

Onde Ouvir: Bandcamp

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