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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

40 anos de: Hounds of Love - Kate Bush (1985)

                       

Hounds of Love é o quinto disco da cantora, compositora e produtora britânica Kate Bush, sendo muitas vezes considerado sua obra-prima e um marco que representa um retorno brilhante após três anos desde o lançamento do excelente The Dreaming (1982), um álbum experimental e audacioso que apesar de também aclamado pela crítica, teve uma recepção comercial modesta. Com Hounds of Love, Bush não apenas reafirmou seu talento visionário, mas também alcançou um nível de sucesso sem precedentes em sua carreira.

O álbum se destacou por sua abordagem ao equilibrar experimentação artística e acessibilidade pop que acabaria conquistando tanto a crítica especializada quanto o público como um todo. Seu single principal, Running Up That Hill (A Deal with God) se tornou-se um dos maiores clássicos da artista e demonstrou sua habilidade de unir letras introspectivas a uma sonoridade atmosférica e envolvente. 

A estrutura do álbum também reforça sua singularidade ao ser dividido em duas partes distintas, com o lado A – que leva o nome do disco - oferecendo músicas mais diretas e radiofônicas, enquanto que o lado B, intitulado The Ninth Wave traz faixas que juntas geram a suíte conceitual que narra a história de uma pessoa à deriva no mar que luta pela sobrevivência enquanto passa por visões e reflexões. Esse formato narrativo aliado ao uso pioneiro de samplers e uma produção sofisticada fez de Hounds of Love um dos álbuns mais influentes da música pop experimental.

Após o lançamento de The Dreaming, Bush optou por se afastar temporariamente do cenário musical. Em vez de seguir imediatamente para um novo projeto sob a pressão da indústria fonográfica, ela tomou a decisão estratégica de construir seu próprio estúdio de gravação, o Solstice Studios em sua casa na zona rural da Inglaterra. Essa mudança representou um ponto importante em sua carreira, pois lhe proporcionou um nível de liberdade criativa inédito. Livre das restrições impostas pelos estúdios comerciais e das limitações de tempo e orçamento, Bush explorou novas possibilidades sonoras com a calma que nunca pode ter antes. Esse ambiente íntimo e controlado foi fundamental para a concepção de Hounds of Love.

Vale destacar também, que a tecnologia desempenhou um papel essencial na construção do sonora do disco ao permitir que Kate expandisse ainda mais os limites da experimentação musical. Um dos elementos centrais dessa abordagem foi o uso do Fairlight CMI, um dos primeiros sintetizadores digitais equipados com sampler e que revolucionou a maneira como os artistas podiam manipular e integrar sons em suas composições. Para Bush não chegava a ser algo inédito, afinal, ela já havia explorado esse instrumento em The Dreaming, porém, foi em Hounds of Love que ela o utilizou de forma mais requintada. 

O álbum realmente se destaca em como consegue mesclar instrumentos acústicos e eletrônicos ao fundir cordas, percussões tribais e vozes etéreas com camadas sintéticas geradas pelo Fairlight CMI. A oposição que ocorre entre o orgânico e o tecnológico resultou em uma sonoridade envolvente que se tornou uma das marcas registradas do disco. Além disso, Bush também utilizou gravações em fita manipuladas sobrepondo e distorcendo elementos sonoros para alcançar efeitos imersivos.

- Hounds of Love -

"Running Up That Hill (A Deal with God)" é o single principal do disco e um dos maiores sucessos da carreira de Kate Bush, tanto em impacto cultural quanto em desempenho comercial. A música traz uma abordagem poética sobre empatia e compreensão nas relações humanas. A escolha do título original, A Deal with God, foi considerada controversa por algumas gravadoras, levando Bush a acrescentar Running Up That Hill para evitar possíveis restrições comerciais. A faixa se destaca por sua batida hipnótica que se sustenta por uma percussão eletrônica e sintetizadores etéreos que criam uma atmosfera emocionalmente envolvente. O vocal característico de Bush eleva ainda mais a carga dramática da canção, o que a torna uma experiência sonora única. Não tem como deixar de destacar também que apesar de já ser um clássico desde seu lançamento, a música teve um ressurgimento em 2022 quando foi utilizada em uma cena icônica de Stranger Things. 

"Hounds of Love", a faixa-título é uma das músicas mais emblemáticas do disco, tanto pela sua intensidade sonora quanto pela profundidade lírica. A instrumentação é rica e densa, além de ser marcada por uma bateria intensa e que cria uma sensação de urgência, enquanto as cordas adicionam uma dimensão quase cinematográfica à música. A estrutura musical, com suas transições dinâmicas e arranjos complexos reflete perfeitamente o tema central da letra que explora o medo e o desejo que surgem quando se entrega ao amor de forma mais intensa e vulnerável.

"The Big Sky" apresenta um dos momentos mais dinâmicos do álbum. Com um ritmo acelerado, pulsante e uma vibração dançante, a canção reflete a celebração da vastidão do céu e a maravilha da natureza. Kate por meio de sua performance vocal transmite uma sensação de liberdade. O uso de percussão animada e sintetizadores alegres confere à música uma sensação como a de uma observação do céu que convida o ouvinte a refletir sobre as infinitas possibilidades do universo. A letra também tem um tom de introspecção, mas com uma abordagem leve ao capturar a simplicidade e a maravilha de olhar para cima e perceber a vastidão da vida e do mundo natural.

"Mother Stands for Comfort" traz com ela um dos momentos mais atmosféricos do disco ao se desenvolver dentro de uma sonoridade etérea construída por meio de camadas de sintetizadores que criam uma sensação de imersão, quase como se estivéssemos sendo envoltos por um manto de névoa. O ritmo tranquilo e a voz suave de Kate adicionam uma qualidade hipnótica. A letra sugere um relacionamento entre mãe e filho, mas a natureza desse vínculo é ambígua e desconcertante. Embora a mãe seja retratada como um símbolo de conforto e refúgio, algo em sua proteção parece suspeito. Um belo contraste entre melodia serena e tensão emocional. 

"Cloudbusting" é uma das faixas mais emocionais de Hounds of Love, com uma narrativa comovente inspirada na história real de Wilhelm Reich, um psicanalista e cientista controverso, e seu filho Peter. A canção é uma recriação de um momento traumático da infância de Peter quando ele testemunhou seu pai sendo perseguido e preso pelas autoridades, após ser alvo de investigações por suas ideias não convencionais sobre energia e a psique humana. Reich foi preso em 1956 e sua história de perseguição política e científica é o pano de fundo para “Cloudbusting”. O arranjo é lindíssimo e traz um trabalho intenso e dramático de cordas, a bateria é envolvente e há uma excelente força rítmica, enquanto isso, os sintetizadores dão uma qualidade transcendental à música, como se o ouvinte estivesse sendo transportado para dentro da mente de Peter que está imersa em uma realidade de confusão e angústia. 

- The Ninth Wave –

“And Dream of Sheep" já começa a suíte por meio da representação de um momento de exaustão e desespero, onde a protagonista está sozinha no oceano cercada pela escuridão e pelo frio, enquanto estabelece um estado emocional que mostra sua luta entre o desejo de sobreviver e a tentação de se render ao sono. Musicalmente possui uma textura suave que reforça a ideia de um sonho. O arranjo é minimalista e apresenta piano, sintetizadores e vocais quase sussurrados. Essa leveza instrumental cria uma dualidade com a ansiedade da letra e intensifica o contraste entre a esperança e o medo da morte. 

“Under Ice” é uma peça minimalista e sombria construída em torno de cordas sintetizadas. Os acordes criam uma pulsação rítmica irregular e uma instrumentação fria e mecânica que parece querer reforçar a sensação de um ambiente hostil. Aqui Kate canta de uma maneira mais tensa e contida, aumentando dessa forma a dramaticidade da música que liricamente evoca a sensação de aprisionamento e desorientação. A personagem parece sonhar que está patinando sobre um lago congelado, mas logo percebe algo ou alguém preso sob o gelo.

"Waking the Witch" possui uma letra que descreve uma mulher sendo julgada, acusada e condenada como bruxa. A protagonista é interrogada e as palavras que a cercam são ameaçadoras e carregadas de uma sensação de perseguição. Musicalmente começa com um piano calmo e vozes suaves, mas rapidamente se transforma em um caos sonoro com vocais distorcidos, batidas intensas e vozes ameaçadoras que parecem representar inquisidores. Possui uma abordagem fragmentada e experimental, além de mudanças bruscas de ritmo e vocais sobreposto.

"Watching You Without Me" carrega uma atmosfera misteriosa criada por um clima melancólico. A base feita pelos sintetizadores é deliciosa, enquanto a bateria eletrônica minimalista ao fundo traz uma espécie de balanço hipnótico. Os vocais parecem soar ao longe, o que reforça o conceito da letra que tem a ideia de transmitir um profundo senso de frustração e impotência. A narradora parece estar separada de seu amado enquanto o observa sem que ele possa vê-la ou ouvi-la.

"Jig of Life" adota uma musicalidade mais folclórica e celta através de arranjos de violão, uma percussão alegre e uma melodia enérgica que evoca a imagem da clássica festa da terceira classe do Titanic em que o Jack dança com a Rose. Essa sonoridade mais vibrante contrasta com a tensão das faixas anteriores. Kate canta de uma maneira animada e bastante expressiva uma música que carrega uma letra mais otimista ao falar sobre o impulso de viver, de lutar e de se renovar, além de transmitir uma sensação de esperança e de estar prestes a romper com o passado. 

“Hello Earth”, musicalmente é um dos momentos mais épicos do disco. Inicialmente entrega uma sonoridade suave e misteriosa, mas não demora muito e ela se eleva para uma seção orquestral incrível que inclui alguns vocais em coro e belíssimos arranjos de cordas. Os vocais suaves de Bush criam uma sensação de introspecção e solidão, enquanto a instrumentação evoca imensidão e até um pouco de misticismo. Sua letra representa um momento de transcendência e contemplação, onde a protagonista exausta e à beira da morte entra em um estado de quase sonho. 

"The Morning Fog" tem uma sonoridade reconfortante com um ritmo animado e arranjo de piano e cordas que cria uma sensação de serenidade. A melodia é do tipo acolhedora e os vocais de Kate são suaves e delicados quase como um suspiro de alívio. A música traz uma sensação de paz por meio de uma estrutura simples e que encerra a suíte de forma otimista. Diferentemente das faixas anteriores, marcadas pelo desespero, medo e alucinações, "The Morning Fog" traz uma sensação de renascimento e esperança. Após a longa luta contra a morte, a protagonista parece finalmente emergir para a superfície e encontrar a salvação. 

Na época de seu lançamento, Hounds of Love foi recebido com aclamação tanto da crítica quanto do público e consolidou Kate Bush como uma das artistas mais inovadoras de sua geração. O álbum demonstrou não apenas sua habilidade única como compositora e produtora, mas também sua capacidade de equilibrar experimentação e acessibilidade ao criar um trabalho que era simultaneamente ousado e comercialmente viável. 

A prova disso é que o disco estreou diretamente no topo das paradas britânicas, desbancando ninguém mais e ninguém menos que Like a Virgin da Madonna, garantindo a Bush seu segundo álbum número um no Reino Unido. O sucesso foi impulsionado principalmente pelo single "Running Up That Hill (A Deal with God)" e que se tornou um de seus maiores hits. A música não apenas conquistou o público europeu, mas também abriu portas para Bush no mercado estadunidense, onde alcançou posições elevadas na Billboard Hot 100, algo que até então ela não havia conseguido com suas obras anteriores.

Além do desempenho comercial, vale destacar também que o álbum foi celebrado pela crítica por sua produção inovadora, sua fusão de elementos eletrônicos e acústicos e sua abordagem cinematográfica das composições. O lado A do disco, repleto de faixas mais diretas e acessíveis, foi elogiado por sua força melódica e riqueza instrumental, enquanto isso, o lado B impressionou pela ambição conceitual e sua narrativa musical envolvente.

Ao longo dos anos, Hounds of Love só cresceu em prestígio, sendo frequentemente citado como um dos álbuns mais influentes da década de 1980 e um marco na música pop experimental. Seu impacto se estendeu por décadas, inspirando até hoje diversos artistas e resgatando novas gerações de ouvintes, especialmente após o ressurgimento de "Running Up That Hill" nas paradas em 2022 graças à sua inclusão na série Stranger Things. Com isso, o legado do álbum foi ainda mais reforçado, reafirmando sua posição como uma das obras mais visionárias e atemporais da história da música popular. Uma obra-prima. 

NOTA: 10/10

Gênero: Art Pop, Pop Progressivo

Faixas:

- Hounds Of Love -

1. Running Up That Hill - 5:03
2. Hounds Of Love - 3:03
3. The Big Sky - 4:41
4. Mother Stands For Comfort - 3:08
5. Cloudbusting - 5:10

- The Ninth Wave -

6. And Dream Of Sheep - 2:45
7. Under Ice - 2:21
8. Waking The Witch - 4:18
9. Watching You Without Me - 4:07
10. Jig Of Life - 4:04
11. Hello Earth - 6:13
12. The Morning Fog - 2:34

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

50 anos de: Voyage of the Acolyte - Steve Hackett (1975)


Steve Hackett é o tipo de guitarrista que cativa qualquer apreciador de um toque refinado e elegante nas seis cordas. Mais do que ser lembrado – ou, para alguns, conhecido – como o ex-guitarrista do Genesis, Hackett merece ser celebrado por sua brilhante trajetória solo que foi construída sobre uma base de qualidade excepcional e versatilidade impressionante.

Sem jamais se prender a rótulos, o guitarrista transita com naturalidade por uma ampla gama de estilos sempre imprimindo sua identidade única independentemente do gênero que explora. Seja no jazz-rock, pop, rock progressivo, música brasileira, blues, violão clássico ou até na música erudita, sua abordagem é sempre sofisticada e inspiradora. No fim das contas, para Steve Hackett pouco importa o território musical que escolhe desbravar — onde quer que esteja, sua música floresce de uma forma inconfundível.

Voyage of the Acolyte não é apenas o seu primeiro álbum solo, mas também a primeira incursão solo de qualquer membro do Genesis. Com um forte caráter progressivo e experimental, o disco revela a identidade musical distinta de Hackett, tanto como compositor quanto como guitarrista. Suas faixas exploram uma rica tapeçaria sonora, entrelaçando várias de suas influências.

Durante sua passagem pelo Genesis, já se destacava por uma abordagem inovadora da guitarra ao introduzir técnicas como tapping e volume swells, além do uso sofisticado de texturas e efeitos que ampliavam a paisagem sonora da banda. No entanto, dentro do grupo ele frequentemente sentia que suas ideias não eram plenamente aproveitadas. Foi nesse contexto que Voyage of the Acolyte surgiu como uma oportunidade para Hackett expandir sua criatividade sem amarras, permitindo-lhe desenvolver sua própria visão musical de maneira mais ampla e pessoal. O álbum não apenas reafirmou seu talento como compositor e instrumentista, mas também marcou o início de uma jornada solo repleta de experimentação e originalidade.

A principal inspiração por trás de Voyage of the Acolyte veio do tarô, uma influência que se manifesta tanto nas letras quanto na atmosfera envolvente das músicas. Cada faixa remete a um arcano maior e tece uma narrativa simbólica que reflete a jornada humana através do mistério e da descoberta. Essa temática mística permeia toda a obra, o que lhe dá um caráter quase ritualístico. O próprio título do álbum evoca a trajetória do "acólito", um aprendiz espiritual que busca sabedoria e evolução por meio das experiências da vida.

A sonoridade de Voyage of the Acolyte é uma fusão de rock progressivo com influências sinfônicas e folk que são enriquecidas por toques eletrônicos e elementos experimentais. O álbum destaca-se por sua construção cuidadosa de texturas sonoras, sendo esse, um dos maiores trunfos de Steve Hackett tanto como guitarrista quanto como arranjador. Sua abordagem sonora perfeita incorporou efeitos atmosféricos e gravações em camadas, além de uma estética quase cinematográfica na estrutura das faixas. 

O álbum se inicia com "Ace of Wands", uma faixa eletrizante que prende o ouvinte desde os primeiros segundos e marca a sua identidade com uma guitarra vibrante e complexa – um verdadeiro cartão de visitas do estilo de Hackett. A energia da música é impulsionada pela excelente bateria de Phil Collins, enquanto John Hackett adiciona uma camada extra de intensidade com sua flauta executada de maneira agressiva e dinâmica. Uma composição repleta de mudanças de andamento, soar de sinos e passagens de guitarra que transitam entre o virtuosismo e a sensibilidade melódica. Mais do que apenas a faixa de abertura, "Ace of Wands" também marca o início de uma carreira brilhante e duradoura. 

"Hands of the Priestess Part I" é uma peça etérea e envolvente conduzida por uma flauta delicada e expressiva que imprime uma atmosfera encantadora. A guitarra de Hackett com seu tom misterioso e levemente assombrado evoca paisagens sonoras que ele ajudou a construir durante sua passagem pelo Genesis, porém, aqui ganha uma nova abordagem ao soar como algo mais pessoal e expansivo. O resultado é uma composição de beleza hipnótica com cada nota parecendo estar flutuando no.

"A Tower Struck Down" é uma das faixas mais intensas e sombrias do álbum, mergulhando em uma sonoridade agressiva quase caótica. A poderosa base rítmica é ancorada por Mike Rutherford, que entrega uma linha de baixo robusta e sendo reforçada ainda mais pela presença de Percy Jones em um segundo baixo. Hackett explora tons ásperos e atmosferas densas enquanto a faixa evolui de forma imprevisível. Em determinado momento, a composição se transforma em uma paisagem sonora inquietante, onde camadas de guitarras se fundem a uma multidão gritando, explosões e efeitos abstratos, criando um verdadeiro clímax de tensão. 

"Hands of the Priestess Part II" aprofunda ainda mais a atmosfera etérea introduzida na primeira parte ao trazer uma sonoridade ainda mais suave e delicada. Os teclados adicionam uma sutil luminosidade ao tom melancólico e sombrio do álbum, equilibrando mistério e tristeza sem dissipar completamente a aura introspectiva da composição. Embora tenha somente pouco mais de um minuto e meio, funciona como um complemento perfeito para a Parte I, encerrando-a com elegância e coesão. 

"The Hermit" traz uma sonoridade suave e melancólica, mas com algo que era novidade na época, o vocal de Steve Hackett, que inclusive se revela surpreendentemente competente e emotivo, acrescentando uma camada adicional de profundidade à música. Uma voz sutil e introspectiva que se se entrelaça perfeitamente com a guitarra que continua a impressionar com sua habilidade única de transmitir vários sentimentos. O título da faixa evoca a imagem de um eremita solitário, enquanto a música com sua atmosfera etérea remete a um tipo de conto de fadas sombrio. É possível perceber algo no som dessa peça que antecipa a essência de A Trick of the Tail.

"Star of Sirius" é uma das faixas mais complexas e dinâmicas do disco, começando de forma suave, mas logo se transformando em uma montanha-russa sonora. Os vocais de Phil Collins brilham como nunca, talvez porque ele esteja se expressando de forma autêntica, sem tentar emular o estilo de Peter Gabriel. Sua performance aqui é íntima e poderosa e traz uma nova camada de humanidade à música. A transição para um estilo mais jazzy e violento é abrupta, marcada pelo teclado que prepara o terreno para uma nova direção sonora. A guitarra de Hackett que constrói uma parede de som imponente encaixa-se perfeitamente nesse novo contexto ao criar uma tensão crescente. A faixa então se desvia novamente, agora adotando uma sonoridade mais suave onde os teclados e flautas se combinam de maneira extremamente harmoniosa antes de nos levar a uma complexa seção de bateria, Mellotron e mais uma vez a guitarra de Steve.

"The Lovers" é uma breve e suave faixa acústica que oferece um merecido descanso após a complexidade vibrante de "Star of Sirius". Com sua simplicidade delicada a música cria um espaço de reflexão e proporciona um alívio de intensidade e que serve como uma ponte emocional que prepara o terreno para o clímax final do álbum

O álbum se encerra de maneira apoteótica com "Shadow of the Hierophant", um verdadeiro épico que é a culminação de tudo o que foi construído ao longo do disco. A música começa suavemente com os vocais etéreos e cristalinos de Sally Oldfield que conduz o ouvinte por variações musicais intrincadas, ora delicadas e ora poderosas. Sua voz com sua qualidade única cria uma jornada sensorial que se desenrola de maneira quase mágica.

À medida que a música avança, uma passagem instrumental dramática interrompe a voz de Sally pela primeira vez, oferecendo um contraste que prepara o terreno para as próximas transformações. Essa alternância entre os vocais e a instrumentação se repete em momentos distintos, até que em um pico quase psicodélico, toda a banda se junta em uma explosão sonora que leva a música a um novo nível de intensidade.

O ponto de virada chega quando Steve Hackett introduz uma mudança de andamento, conduzindo a faixa para sua seção final, onde a complexidade se desdobra em uma sequência de atmosferas que se alternam e se complementam de uma maneira impecável. O clímax do álbum é de uma dramaticidade impressionante, com a guitarra de Hackett e seu estilo único se misturando ao Mellotron, sinos e o restante da banda, criando desta forma um dos finais de música mais emotivamente espetaculares que conheço. 

Ao longo de cinco décadas de uma prolífica carreira solo, Steve Hackett presenteou o universo da música com inúmeros álbuns de altíssima qualidade, cada um refletindo sua criatividade inesgotável e sua habilidade ímpar como compositor e instrumentista. No entanto, nenhum deles conseguiu alcançar a perfeição singular de seu álbum de estreia. Voyage of the Acolyte permanece uma obra-prima insuperável, um trabalho que transcende o tempo e continua a ser uma referência dentro do rock progressivo. Sua musicalidade é refinada, requintada e de extremo bom gosto, sendo executada por músicos excepcionais que ajudaram a dar vida a uma visão artística única.

Mais do que apenas um grande disco, Voyage of the Acolyte representa um marco na história do gênero, sendo também um testemunho do talento de Hackett e de sua capacidade de criar atmosferas sonoras envolventes e repletas de emoção. Um trabalho magistral do mais prolífico músico solo a emergir de uma das maiores bandas de rock progressivo dos anos 70.

NOTA: 10/10

Gênero: Rock Progressivo

Faixas:

1. Ace of Wands - 5:23
2. Hands of the Priestess, Part I - 3:28
3. A Tower Struck Down - 4:53
4. Hands of the Priestess, Part II - 1:31
5. The Hermit - 4:49
6. Star of Sirius - 7:08
7. The Lovers - 1:50
8. Shadow of the Hierophant - 11:44

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e Youtube

House Of Lords - Full Tilt Overdrive (2024)


O House Of Lords retorna em grande estilo com Full Tilt Overdrive, seu décimo quarto álbum de estúdio, provando mais uma vez que a banda é sinônimo de consistência e qualidade no hard rock. Liderados pelo icônico vocalista e produtor James Christian, o grupo entrega um disco enérgico e impecavelmente produzido, repleto de faixas memoráveis que reafirmam seu status como uma das forças mais resilientes do gênero.

Desde sua estreia homônima em 1988, o House Of Lords consolidou uma base de fãs leal e uma reputação sólida como uma banda que combina melodia, poder e sofisticação. A formação atual conta com James Christian (vocais e baixo), o virtuoso guitarrista Jimi Bell, o tecladista e compositor Mark Mangold e o baterista Johan Koleberg. Juntos, esses músicos criaram um trabalho coeso e inspirado, dando continuidade ao legado da banda sem perder a relevância.

O disco abre com a intensa "Crowded Room", que dá o tom do álbum com sua pegada agressiva e riffs poderosos. Na sequência, "Bad Karma" se destaca como um single irresistível, com um refrão pegajoso e um solo espetacular de Jimi Bell. A faixa-título, "Full Tilt Overdrive", é uma explosão de energia, impulsionada por guitarras incendiárias e uma performance vocal de tirar o fôlego.

Outro momento marcante é "Taking The Fall", uma balada de estrutura impecável que remete ao estilo de bandas como Gotthard, com sua melodia envolvente e um toque emotivo que cativa instantaneamente. Já "Not The Enemy" combina peso e melodia de maneira brilhante, enquanto os teclados de Mangold adicionam uma profundidade única à faixa.

O álbum também se aventura em territórios menos convencionais com "You're Cursed", que começa com um clima cinematográfico antes de explodir em um hard rock vibrante, e "State of Emergency", que aborda temas sociais com uma combinação de letras impactantes e uma base instrumental poderosa. O encerramento épico fica por conta de "Castles High", uma faixa de quase 10 minutos que transporta o ouvinte para uma narrativa quase fantástica, culminando em um clímax musical memorável.

A produção cristalina, a cargo de James Christian e Mark Mangold, merece elogios. Cada instrumento encontra seu espaço na mixagem, permitindo que os detalhes das composições sejam apreciados. Os solos de guitarra de Jimi Bell, em especial, são um show à parte, demonstrando técnica e emoção em igual medida. E a voz de Christian é simplesmente perfeita para o som da banda.

Full Tilt Overdrive foi lançado no Brasil pela Shinigami Records, facilitando o acesso dos fãs brasileiros a este trabalho incrível. Para os amantes do hard rock, este é um álbum essencial que mantém viva a chama do House Of Lords e reforça sua posição como uma das grandes bandas do gênero. Indispensável!

NOTA: 9/10

Gênero: Hard Rock

Faixas:
1. Crowded Room (4:45)
2. Bad Karma (4:11)
3. Cry Of The Wicked (5:09)
4. Full Tilt Overdrive (4:57)
5. Taking The Fall (4:29)
6. You're Cursed (5:34)
7. Not The Enemy (4:09)
8. Don't Wanna Say Goodbye (4:01)
9. Still Believe (4:37)
10. State Of Emergency (4:47)
11. Castles High (9:25)

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming e mídia física através da Shinigami Records.

Viima - Väistyy Mielen Yö (2024)

                       

A banda finlandesa Viima retornou de um longo hiato de 15 anos com o álbum Väistyy Mielen Yö, marcando o seu renascimento na cena do rock progressivo. Após o lançamento de dois discos em 2006 e 2009 a banda desapareceu sem dar pistas de um possível retorno e deixou na cabeça daqueles que a acompanharam na época uma incerteza sobre o futuro. No entanto, em 2024 eles surpreenderam a todos com o que é sem dúvida o seu trabalho mais refinado até hoje.

A formação do quinteto é praticamente a mesma de 15 anos atrás, com Hannu Hiltula (flauta, teclados, vocal e backing vocals), Mikko Uusi-Oukari (guitarras e Mellotron), Mikko Väärälä (bateria, vocal, teclados e sinos) e Aapo Honkanen (baixo). A única mudança significativa foi a entrada de Risto Pahlama (vocal, teclados e Mellotron), substituindo Kimmo Lähteenmäki nos teclados. Mesmo tendo saído da banda, Lähteenmäki ainda faz uma participação especial na faixa "Vuoren Rauha."

Väistyy Mielen Yö é composto por cinco faixas que demonstram uma maturidade musical impressionante ao combinar elementos sinfônicos com incursões jazzísticas e toques de folk, além de referências à música clássica. A banda se destaca por soar sempre fresca e inovadora, evitando uma sonoridade repetitiva ou derivativa. É claro que influências de bandas como Camel, Genesis e Jethro Tull, assim como dos conterrâneos Tabula Rasa e Scapa Flow, são perceptíveis, mas a banda consegue incorporar essas referências sem comprometer sua originalidade.

A primeira faixa, "Tyttö Trapetsilla", é uma peça compacta e melódica com destaque para os temas de flauta, violão e guitarra solo. A seção rítmica e as inserções pontuais de órgão também contribuem para a atmosfera animadora do início do álbum. "Äiti Maan lapset" é uma suíte de quase 19 minutos que se desenvolve de forma coesa se alternando entre passagens serenas e momentos mais intensos, porém, sem exageros. A peça se destaca pelas camadas de teclados, linhas compactas de baixo, guitarras robustas e um vocal adequado que complementa a rica instrumentação.

"Pitkät Jäähyväiset" começa com uma flauta delicada e notas de teclado antes de evoluir para o tema central que é marcado por uma batida envolvente. A música ganha peso à medida que avança com riffs de guitarra intensos e uma seção rítmica pulsante que culmina em uma atmosfera psicodélica criada pelos teclados. "Perhonen" é um dos destaques do álbum, começando de forma hipnotizante e crescendo em intensidade até alcançar um momento mais pesado, com bateria e baixo em destaque, enquanto a guitarra e o teclado criam um clima sinfônico e atraente. "Vuoren Rauha" é a última faixa do álbum, inicia com sons de vento criados por Kimmo Lähteenmäki, seguidos por uma serena combinação de piano e voz. A música evolui com a entrada da bateria e do Mellotron que conferem um caráter épico à peça que tem seu clímax em um solo de órgão e termina de forma sutil com sons de vento e uma voz distante.

Väistyy Mielen Yö é um trabalho coeso, onde os músicos atuam como um conjunto sem protagonismos, mas com uma pluralidade harmoniosa que mantém a banda bem direcionada em suas inúmeras ideias. Para os interessados, as letras das músicas estão disponíveis em inglês no site oficial da banda, viima.org, oferecendo uma experiência ainda mais completa para os fãs de rock progressivo.

NOTA: 9,4/10

Gênero: Rock Progressivo, Folk Rock

Faixas:

1. Tyttö Trapetsilla (4:42)
2. Äiti Maan Lapset (18:50)
3. Pitkät Jäähyväiset (6:38)
4. Perhonen (6:45)
5. Vuoren Rauha (7:37)

Onde Ouvir: Plataformas de Streaming, Bandcamp e Youtube

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Pearl Jam - Dark Matter (2024)

                        

Ao mencionar o Pearl Jame estou evocando o ponto de partida da minha relação profunda com o mundo do rock. Remonto a um momento marcante de 1992 quando me deparei com o videoclipe de Jeremy. Aquela narrativa visual culminando em um desfecho poderoso foi como uma revelação para mim, despertando um interesse imediato e visceral pelo grupo. Foi um momento crucial onde minha conexão com a música e a expressão artística atingiu um novo patamar.

Nos meses seguintes, fui cativado ainda mais pela presença do Pearl Jam quando a MTV exibiu a icônica performance de Porch no Pinkpop. A energia, paixão e a autenticidade da banda eram palpáveis e eu me vi totalmente absorvido pela experiência musical. Logo depois, o Unplugged MTV me ofereceu uma perspectiva mais íntima e crua da musicalidade do grupo, consolidando ainda mais minha admiração.

Dark Matter chega como o 12º disco de estúdio da banda – o que considero pouco para uma carreira discográfica de 33 anos. Mas de qualquer forma – e o mais importante de tudo -, eles parecem querer continuar soando relevantes ao entregar um disco cheio de dinamismo, frescor e de uma sonoridade que mantém sua música envolvente durante todos os seus cerca de 48 minutos divididos em 11 canções. Apenas um adento, se você é daquelas pessoas que até hoje evocam discos como Ten ou VS para comparar com álbuns mais recentes da banda, não sei o que o que você faz ouvindo-os ainda, agora se você compreende o que é o Pearl Jam hoje em dia, certamente Dark Matter vai atingi-lo da melhor forma possível.

"Scared Of Fear" abre o disco entregando uma vibração clássica da banda, vocais enérgicos, guitarras cativantes e uma seção rítmica sólida, precisa e sincronizada que sustenta o ritmo da faixa muito bem. "React, Respond" mantém o disco dentro de uma sonoridade de alta voltagem, com refrão chiclete e uma linha instrumental maciça. A faixa captura a energia crua da banda, combinando riffs intensos e ritmos pulsantes. "Wreckage" é uma balada que se destaca no álbum por seu estilo emocional e envolvente. Por meio de sua estrutura estilística a música parece prestar homenagem a Tom Petty ao incorporar elementos de sua abordagem distinta à composição e à performance.

"Dark Matter" é uma das peças mais pesadas do álbum. Seção rítmica penetrante, riffs encorpados de guitarra e um solo ao melhor estilo Mick McCready, um cara que nunca foi um “guitar hero”, porém, sempre entendeu bem o que é necessário pra soar marcante dentro da banda. "Won't Tell" é outra balada do álbum que embora não seja tão impactante quanto "Wreckage", ainda oferece uma experiência de qualidade. A faixa se destaca por sua batida constante e envolvente, proporcionando uma base sólida. É enriquecida com o acréscimo de alguns leves toques de sintetizadores.

"Upper Hand" possui uma introdução bastante atmosférica de mais de um minuto e meio feita por sintetizadores e guitarra até entregar mais uma peça em ritmo lento. Os floreios de guitarra solo são belíssimos e exemplificam exatamente o que eu disse na faixa anterior. "Waiting For Stevie" me fez sentir uma grande “vibração grunge” encontrada em discos – da banda ou não – da primeira metade dos aos 90. Talvez a produção mais polida possa atrapalhar um pouco essa percepção, mas basta se concentrar e perceber que o grunge clássico, digamos assim, está ali.

"Running" é outro dos momentos mais pesados do disco. Assim que começou foi impossível não lembrar de Rearviewmirror, clássica faixa do disco VS. Possui a melhor seção rítmica do álbum e alguns dos vocais mais raivosos. As guitarras como sempre soam perfeitas, tanto nos riffs quanto nos solos. "Something Special", após a “violência” da faixa anterior, tudo suaviza de novo por meio de uma peça em que Vedder faz um aceno para as suas filhas. Nota-se uma boa influência na música country moderna.

"Got To Give" é um daqueles velhos exemplos em que o básico pode funcionar muito bem, um rock and roll direto e objetivo que apresenta uma abordagem clássica que é ao mesmo tempo empolgante e envolvente. O acréscimo de algumas linhas de piano encaixou muito bem. "Setting Sun" é a faixa de encerramento. Novamente há uma boa vibração country e entrega um fechar de cortinas extremamente aconchegante para o disco.

Dark Matter apresenta um Pearl Jam confiante e com uma sonoridade totalmente própria e característica. A banda demonstra que embora valorize suas raízes e tenha respeito por sua história, não deixa de buscar novas perspectivas em sua arte. No mais novo capítulo de sua história, a banda entrega uma celebração da sua identidade e que tem a capacidade ressoar positivamente tanto nos fãs de longa data, quanto com novas gerações de ouvintes.

NOTA: 7,2/10

Gênero: Rock Alternativo, Hard Rock

Faixas:

1. Scared of Fear – 4:24
2. React, Respond – 3:30
3. Wreckage – 5:00
4. Dark Matter – 3:31
5. Won't Tell – 3:28
6. Upper Hand – 5:57
7. Waiting for Stevie – 5:41
8. Running – 2:19
9. Something Special – 4:06
10. Got to Give – 4:37
11. Setting Sun – 5:43

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The Weather Station - Humanhood (2025)

                                       

The Weather Station é um projeto liderado pela canadense Tamara Lindeman. Suas composições se destacam pela profundidade com que são explorados temas diversos muitas vezes dentro da complexidade envolta das nossas emoções. Combinando letras introspectivas e poéticas com melodias atmosféricas e bem construídas, o projeto apresenta arranjos muito bem elaborados que transitam entre o folk tradicional, indie rock e até mesmo algumas nuances jazzísticas que juntos criam dessa forma uma sonoridade envolvente.

O projeto ao longo dos anos passou por uma clara evolução. Enquanto os primeiros álbuns apresentavam um estilo mais acústico e enraizado no folk tradicional, os trabalhos mais recentes entregam uma abordagem mais expansiva. Com o álbum "Ignorance" (2021), Tamara trouxe uma transformação sônica ao incorporar elementos de art pop e jazz que ampliaram a sonoridade do projeto. Instrumentos como cordas, teclados e saxofones são utilizados na construção de paisagens sonoras sofisticadas que enriquecem as narrativas de suas letras. 

Coproduzido por Lindeman e o seu experiente parceiro musical Marcus Paquin, Humanhood álbum foi gravado ainda em 2023 trazendo consigo uma sonoridade cheia de sofisticação dentro de uma fusão rica de pop, folk, indie rock, jazz e música ambiente, criando dessa forma uma experiência sonora que é ao mesmo tempo expansiva e intimista. A atmosfera do álbum é amplificada pelo uso de arranjos texturizados e bastante detalhados que possuem a capacidade de evocar tanto vulnerabilidade quanto força.

“Descent" abre o álbum com uma introdução instrumental breve e atmosférica. Apresenta um arranjo minimalista de flauta e uma melodia etérea que sugere introspecção e mistério. "Neon Signs" surge de forma orgânica mantendo a batida deixada por "Descent", como se ambas as faixas estivessem conectadas em um fluxo contínuo. A música entrega uma mescla de indie rock e pop atmosférico com uma batida de ritmo ininterrupto, enquanto isso, os sintetizadores criam uma paisagem sonora envolvente e as guitarras apesar de discretas adicionam belas camadas. 

“Mirror” é uma das faixas mais sofisticadas do disco, oferecendo uma instrumentação muito bem cuidada e excelente atmosfera. Traz alguns elementos de jazz contemporâneo que adicionam tanto profundidade quanto complexidade à música. A bateria é fluida e discreta e os “ataques” de saxofone feitos de maneira orgânica em momentos pontuais adicionam um charme especial. "Window" se constrói sobre uma batida sólida e cadenciada com uma percussão bem pronunciada que confere à música um impulso contínuo, como se estivesse empurrando o ouvinte para frente. A batida não apenas dá movimento à música, mas também a coloca em um território mais rítmico, enquanto sua letra parece capturar o momento exato em que alguém toma coragem para abandonar uma situação sufocante.

“Passage” é um pequeno interlúdio instrumental de menos de um minuto baseado em texturas eletrônicas ambientais. "Body Moves" é uma faixa que se sustenta em um groove ritmado e dançante. Possui algumas linhas profundas e marcantes de baixo que dão à música uma base sólida e cheia de ritmo. Possui uma influência de funk que adiciona um dinamismo contagiante que faz a música remeter imediatamente ao desejo de movimento e dança. Inclusive, o vídeo oficial é apenas uma câmera focada em Tamara realizando alguns leves movimentos. 

"Ribbon" é uma composição acústica que se destaca pela sua simplicidade e delicadeza. A faixa possui um arranjo sutil de piano que cria uma atmosfera íntima e introspectiva. À medida que avança, sua sonoridade vai se expandindo e conferindo à faixa uma qualidade onde cada acorde soa como se estivesse sendo cuidadosamente projetado para evocar uma emoção profunda. “Fleuve”, com pouco mais de um minuto, é mais um interlúdio que nasce e termina por meio das mesmas notas de piano deixado pela faixa anterior.

"Humanhood", a faixa-título é uma fusão que combina muito bem elementos de folk e jazz, criando desta forma uma sonoridade quase sedutora. A base da música é construída por arranjos de sopro que adicionam uma textura rica e fluida, enquanto a bateria mantém uma sensação de introspecção, mais ou menos como uma espécie de compasso reflexivo e que convida o ouvinte a mergulhar na música.

"Irreversible Damage" é uma faixa mais sombria e melancólica que possui uma enorme profundidade emocional que transborda de cada acorde. O contrabaixo acústico entrega algumas linhas expressivas que parecem refletir a densidade do sentimento da música, enquanto a bateria cria uma textura sonora que permite que cada elemento respire e se desenvolva perfeitamente. A forma que os instrumentos interagem entrega uma forte influência no jazz contemporâneo. 

"Lonely" é uma balada de arranjo minimalista e que permite que a sua emotividade se manifeste de forma pura e direta. Uma seção rítmica de notas delicadas e espaçadas cria uma sensação de solidão e cura emocional – que são os seus temas líricos. Leves sintetizadores atmosféricos preenchem o espaço com sutileza e mostram um exemplo claro de uma música que se constrói dentro de um equilíbrio perfeito entre o silêncio e a expressão. 

"Aurora" é o terceiro interlúdio do álbum, uma peça etérea de pouco mais de um minuto e meio que funciona como uma pausa meditativa.  É uma interação delicada entre o piano e a flauta que trocam melodias suaves em um diálogo introspectivo. A sonoridade atmosférica do sintetizador preenche o fundo suavemente. 

"Sewing" é a música de encerramento. Começa com uma bateria solitária, mas logo em seguida o piano entra suavemente acompanhando a voz delicada de Tamara que flui com leveza e serenidade, dando à música uma sensação de intimidade e fragilidade. Uma flauta surge de forma suave, como um abraço musical que envolve o ouvinte, então que um som ao fundo vai crescendo gradualmente e cria uma tensão que permeia o ambiente até silenciar repentinamente, deixando a música segue por meio de piano e voz até terminar. 

Apesar de suas abordagens cruas, introspectivas e profundas, Humanhood oferece uma visão sensível e verdadeira sobre temas universais como solidão, identidade, desilusão, amor e desejo, tudo isso dentro de uma musicalidade que se destaca pela sofisticação dos arranjos que combinam elementos de folk, jazz, pop e música ambiente de forma fluida e envolvente, enquanto que as interpretações emocionais de Tamara Lindeman transmitem uma vulnerabilidade que dá vida a cada palavra e nota. 

Por fim, Humanhood não é apenas uma coleção de músicas, ele também é uma jornada dramática e comovente que vai além da superfície ao convidar o ouvinte a refletir sobre sua própria humanidade, suas contradições e as complexidades do que significa ser verdadeiramente humano. 

NOTA: 9/10

Gênero: Art Pop, Art Rock

Faixas:

1. Descent - 1:00
2. Neon Signs - 5:07
3. Mirror - 4:56
4. Window - 2:41
5. Passage 0:48
6. Body Moves - 3:27
7. Ribbon - 3:18
8. Fleuve - 1:10
9.Humanhood - 4:11
10. Irreversible Damage - 5:36
11. Lonely - 4:36
12. Aurora - 1:37
13. Sewing - 5:58

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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

50 anos de: Toys In the Attic - Aerosmith (1975)

                         

Combinando um som cru e energético com um maior requinte em suas composições o terceiro álbum de estúdio do Aerosmith é um marco não apenas na carreira do grupo, mas também na história do rock. Toys In the Attic representou um salto significativo para a banda tanto em termos de sucesso comercial, quanto artístico ao desempenhar um papel importante na consolidação do Aerosmith como uma das maiores forças do rock durante os anos 1970.

Na época do lançamento, o grupo vivia uma transição tanto em termos de sua posição na indústria musical, quanto em suas dinâmicas internas. Apesar de a banda não ter passado despercebida nos dois primeiros discos, principalmente devido ao relativo sucesso alcançado por “Dream On” do seu disco de estreia, seu sucesso foi discreto e os músicos se sentiam incomodados pelo rótulo de “apenas mais uma banda de blues rock" que os críticos e o próprio público haviam lhes colocado, afinal, isso ajudava para que eles figurassem apenas na sombra de bandas já muito bem estabelecidas como Led Zeppelin e Rolling Stones. 

O ambiente em que o álbum foi concebido pode ser definido como uma mistura de pressão, ambição e um espírito criativo em efervescência. A banda se arriscou mais e explorou novos territórios sonoros, o que obviamente elevou a sofisticação de suas composições ao mesmo tempo em que manteve a energia bruta que os caracterizava. O grupo trabalhou incansavelmente para transformar ideias cruas em músicas que fossem ao mesmo tempo acessíveis e ousadas. 

Vale destacar também a presença de Jack Douglas como produtor, afinal, foi um fator essencial para o sucesso do álbum. Ele já havia trabalhado com a banda em Get Your Wings, porém, foi em Toys in the Attic que sua parceria com o Aerosmith atingiu seu auge. Douglas atuava quase como um sexto membro da banda e conseguiu extrair o melhor de cada integrante ao traduzir sua energia caótica em gravações que ainda pareciam espontâneas e vivas. Ao mesmo tempo ele sabia quando desafiar a banda a ajudando a expandir suas fronteiras musicais e incorporar influências externas, como, o funk, de uma maneira que soasse natural.

A faixa-título, que abre o álbum por meio de uma explosão de energia pura, estabelece o tom para tudo que vem a seguir. Desde o primeiro riff frenético a música mergulha o ouvinte em um turbilhão de intensidade e atitude e deixa claro que desta vez o Aerosmith estava ali para marcar território. Essa base instrumental se entrelaça de uma maneira perfeitamente harmônica com os vocais de Tyler que soam cheios de força e irreverência. 

“Uncle Salty” é uma faixa que adota um ritmo mais lento e introspectivo, sendo marcada por um groove pesado e uma atmosfera mais sombria. A linha de baixo é um dos destaques ao estabelecer o tom da canção. O riff de guitarra é bastante simples e mesmo assim memorável. Os vocais de Tyler reforçado por harmonias bem trabalhadas adicionam profundidade e emoção. Sem dúvida é uma peça que evidencia o lado mais reflexivo do Aerosmith. 

“Adam’s Apple” é uma faixa que mistura o rock clássico com uma vibração funky, o que resulta em uma composição cheia de energia e descontração. O riff principal possui um groove natural que prende o ouvinte. Embora as guitarras tragam um toque de blues característico, a estrutura ágil da música confere a ela um dinamismo que a mantém envolvente. Joe Perry brilha ao adicionar licks melódicos e um solo cheio de slides e bends. 

“Walk This Way”, seu riff principal se tornou um dos mais reconhecíveis e icônicos da história do rock. Possui uma combinação de elementos de funk e blues com uma estrutura rítmica precisa e técnica. O riff traz uma energia contagiante que imediatamente prende a atenção do ouvinte, mas que ganha mais força com uma seção rítmica sólida. É a definição de uma faixa que consegue mesclar técnica e vibração com todos da banda trabalhando juntos para criar uma sonoridade que é precisa e cheia de alma. 

“Big Ten Inch Record” é um tributo carismático ao blues e ao jump blues das décadas de 1940 e 1950. Possui uma vibe mais leve e descontraída em comparação com outras músicas do álbum. O uso do saxofone é um elemento chave que confere à faixa uma textura jazzística e traz uma nuance de sofisticação ao disco. Interessante ver como a banda se permite explorar um lado mais lúdico e menos pesado, mas sem perder a autenticidade ou o charme que caracteriza o grupo.

“No More No More” é uma faixa que captura perfeitamente o espírito clássico do rock and roll. O riff principal com sua estrutura dinâmica alterna entre seções mais suaves nos versos e explosões de energia nos refrãos, criando assim, um contraste marcante. É uma prova do talento coletivo da banda ao mostrar uma habilidade impressionante para criar um som que é simultaneamente vigoroso e refinado. Minha música preferida do disco.

“Round and Round” é a faixa mais pesada do disco e contrasta intensamente com o restante do álbum. Desde o início a música se destaca por seu clima sombrio que remete ao Black Sabbath e que é estabelecido por riffs lentos e graves. A linha de baixo é pulsante e profunda, enquanto a bateria se desenvolve de forma arrastada, reforçando ainda mais a tonalidade densa e introspectiva da música. É um claro exemplo em que a banda quer mostrar sua capacidade de explorar territórios mais sombrios. 

“You See Me Crying” é a peça de encerramento, uma balada bastante dramática e que destaca o lado mais emocional da banda. É construída principalmente em torno de um piano expressivo de tom melancólico e introspectivo. Os arranjos orquestrais adicionam uma camada que enriquece ainda mais à música. As guitarras desempenham um papel mais sutil. Mas Tyler é quem rouba a cena por meio de uma performance visceral em que alcança notas altíssimas com uma carga emocional impressionante. Um belíssimo final de disco. 

Toys in the Attic não apenas solidificou o Aerosmith como uma das maiores bandas de rock da história, mas também definiu um momento crucial para o gênero ao elevar o hard rock a novos patamares. O álbum marcou um ponto de virada na carreira da banda e consolidou sua identidade musical provando sua capacidade de inovar dentro do cenário musical competitivo da época. O álbum também destacou a química entre Steven Tyler e Joe Perry, estabelecendo-os como uma das duplas mais icônicas e dinâmicas do rock. 

Musicalmente, Toys in the Attic é um álbum incrivelmente diversificado e que se destaca por explorar uma ampla gama de estilos como hard rock, blues, funk e até elementos de jazz, além da utilização da música orquestral. Essa fusão reflete não apenas a habilidade técnica da banda, mas também sua disposição de experimentar e expandir os limites do rock tradicional, com cada uma das faixas do disco apresentando nuances únicas por meio das guitarras marcantes de Perry, os vocais poderosos e emocionais de Tyler e a sólida seção rítmica formada pelo baixo de Tom Hamilton e a bateria de Joey Kramer, que trabalham em harmonia para capturar a energia crua e autêntica da grupo em um álbum que encapsula o espírito de uma era enquanto permanece eternamente relevante.

NOTA: 10/10

Gênero: Hard Rock

Faixas:

1. Toys in the Attic - 3:05
2. Uncle Salty - 4:08
3. Adam's Apple - 4:34
4. Walk This Way - 3:39
5. Big Ten Inch Record - 2:10
6. Sweet Emotion - 4:34
7. No More No More - 4:35
8. Round and Round - 5:02
9. You See Me Crying - 5:12

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Julia Holter - Something in the Room She Moves (2024)

                        

Julia Holter é conhecida por sua abordagem musical experimental na música pop e alternativa. Começou a estudar música desde cedo, aprendendo piano, violão e canto. Ela frequentou a Alexander Hamilton High School e depois estudou composição musical no California Institute of the Arts, onde obteve seu BFA e MFA.

A música de Holter é frequentemente descrita como uma fusão única de diversos gêneros, incluindo música erudita, pop experimental e eletrônica ambiental. Essa fusão eclética resulta em um som original e cativante. O aspecto mais notável são suas letras poéticas e atmosféricas, que podem transportar os ouvintes para um universo emocionalmente rico e evocativo. As letras muitas vezes exploram temas profundos e introspectivos, enquanto a atmosfera musical proporciona uma sensação de imersão e contemplação.

Something in the Room She Moves é o mais novo álbum da artista, trazendo novamente suas principais características, como composições intrincadas e arranjos complexos. Cada faixa é cuidadosamente elaborada, com camadas de instrumentação que se entrelaçam de maneira sofisticada, criando uma experiência auditiva rica em detalhes e texturas sonoras.

Something in the Room She Moves possui uma carga emocional profunda, influenciada em parte pela experiência pessoal da artista Julia Holter durante a pandemia do COVID-19 e sua jornada na maternidade. A composição captura momentos íntimos e reflexivos, refletindo a complexidade dos sentimentos que surgem em tempos de incerteza e transformação. Holter infunde a música com uma sensação de reverência e maravilha diante da vida e do amor. Os arranjos sonoros evocam uma atmosfera de contemplação e introspecção, enquanto as letras poéticas exploram temas de conexão humana, esperança e resiliência.

"Sun Girl" é uma música que inicia por meio de uma boa vibração de indie pop e se mantem assim na maior parte do tempo. O final expansivo e atmosférico em uma frase repetida várias, pode significar uma narração cheios de ideias e visões criativas, onde a mente se liberta para explorar novas possibilidades. "These Morning" é uma faixa melancólica que tem o saxofone como maior destaque, porém, no geral tudo soa de forma profunda provocando uma espécie de cruzamento entre as sensações conforme tudo vai se desenvolvendo. Tudo isso sob uma letra que parece explorar temas de esperança, arrependimento, vulnerabilidade e escapismo

"Something in the Room She Moves" começa doce e serena, mas conforme vai se desenvolvendo, também cresce bastante em intensidade, chegando em um pico quase sinfônico antes de retornar para as suas batidas serenas e melodia melancólica. Traz a busca como tema de sua narrativa, além da  admiração e contemplação, com uma mistura de elementos mundanos e surreais.

"Materia" é bastante intimista e produzida basicamente por meio dos vocais e usos pontuais de teclados que adicionam uma atmosfera taciturna e melodia arrastada, enquanto Holter explora um amor idealizado e compartilhando experiências intensas. "Meyou" é bastante experimental e viajante, onde a sua letra se baseia apenas em repetir inúmeras vezes o nome da faixa. De vocal solo que vai se transformando aos poucos em uma improvisação heterofônica, liricamente pode indicar um equilíbrio ou uma dinâmica de reciprocidade na interação entre duas pessoas. 

"Spinning" possui uma base mais pulsante, com o baixo nas alturas e sintetizadores que a permeiam por toda parte, além das batidas serem mais tempestuosas. Uma autorreflexão que sugere uma aceitação diante de uma jornada pessoal, incluindo tanto os momentos de alegria quanto de tristeza. "Ocean" é uma faixa instrumental. Composta principalmente por teclados espaciais e sintetizadores, a música é construída em camadas intricadas, criando uma paisagem sonora densa e envolvente.

"Evening Mood" possui uma atmosfera bastante liquida, enquanto as suas melodias se entrelaçam, sendo as linhas de baixo e as camadas de teclados seus maiores destaques. Uma verdadeira evocação de sentimentos nostálgicos, conexão e contemplação sobre a passagem do tempo. "Talking to the Whisper", uma desconexão e separação entre duas pessoas e que explora temas como a distância, comunicação, esperança e a natureza complicada do amor. É mais um momento do disco que contem boas doses de experimentações e pinceladas lisérgicas encaixadas brilhantemente.

"Who Brings Me", a ideia do menos é mais que existe dentro do minimalismo pode ser aplicada facilmente aqui. O disco chega ao fim com uma peça encantadora, entregando novamente teclas em camadas, enquanto isso, Holter explora temas como sonho, natureza e o amor, evocando uma sensação de admiração e devoção pelo mundo ao nosso redor e pela pessoa amada.

Something in the Room She Moves é um disco que se comporta como uma montanha-russa de experiências musicais. É evidente que Holter se aventurou por uma variedade de estilos, sons e temas, buscando desafiar as expectativas e criar algo valioso, nos convidando para mergulharmos nas profundezas da nossa própria alma e explorar os mistérios do coração humano.

NOTA: 9,2/10

Gênero: Art Pop

Faixas:

1. Sun Girl - 5:52
2. These Morning - 3:49
3. Something in the Room She Moves - 6:18
4. Materia - 3:08
5. Meyou - 5:55
6. Spinning - 6:14
7. Ocean - 5:38
8. Evening Mood - 6:24
9. Talking to the Whisper - 6:52
10. Who Brings Me - 3:38

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domingo, 26 de janeiro de 2025

50 anos de: Heaven and Hell - Vangelis (1975)

                                       

A primeira metade da década de 1970 foi um período de reinvenção para Vangelis, que já havia conquistado reconhecimento na Europa como membro fundador da banda de rock progressivo Aphrodite’s Child. No entanto, enquanto o grupo alcançava sucesso especialmente com o álbum 666, Vangelis sentia a necessidade de explorar territórios musicais mais experimentais e pessoais. Em busca de se consolidar como compositor solo e um dos pioneiros na música eletrônica, ele mergulhou em uma jornada de autodescoberta artística.

Em busca de um espaço criativo que atendesse às suas necessidades, montou um estúdio próprio em Londres. Este era um período em que os estúdios domésticos ainda eram relativamente raros, mas ele queria um espaço onde pudesse trabalhar sem interrupções, experimentando e gravando no seu próprio ritmo. O estúdio permitiu que ele integrasse sua paixão por instrumentos eletrônicos, como os sintetizadores analógicos com técnicas de gravação modernas. Ele tinha um interesse profundo em criar texturas e paisagens sonoras únicas e seu estúdio foi projetado para possibilitar essa experimentação.

Antes de iniciar a gravação de Heaven and Hell, vale destacar também que o músico já havia lançado alguns álbuns que destacavam sua evolução criativa e sua capacidade de explorar territórios sonoros singulares. Entre esses trabalhos, Earth de 1973 se destaca como um marco inicial de sua carreira solo, misturando elementos eletrônicos com influências do rock progressivo e música folclórica grega. Este álbum revelou sua habilidade em criar texturas sonoras únicas - ainda que dentro de uma estrutura mais convencional.

Além disso, as trilhas sonoras que Vangelis compôs para filmes como L'Apocalypse des Animaux de 1973 demonstraram sua inclinação para composições profundamente atmosféricas e emocionalmente ressonantes. Esse tipo de trilha que é completamente caracterizada por minimalismo e um lirismo intimista, oferecia um vislumbre da sensibilidade artística de Vangelis, que já começava a ultrapassar os limites da música de sua época, sendo cruciais para o desenvolvimento de sua abordagem sonora e serviram como um prelúdio para a grandiosidade e ambição que ele apresentaria em Heaven and Hell. 

Heaven and Hell é amplamente considerado uma das obras mais icônicas de Vangelis e que também marcou a sua estreia pela gravadora RCA Records. É celebrado por sua abordagem corajosa e inovadora que combina com maestria a música eletrônica, coros celestiais e elementos orquestrais em uma fusão sonora que transcende gêneros. Em meio a atmosferas grandiosas e passagens emocionantes o disco não apenas definiu um marco na carreira do músico, mas também influenciou profundamente o panorama da música progressiva e eletrônica da época, consolidando o status de Vangelis como um dos grandes visionários musicais do século XX.

O título Heaven and Hell evoca imediatamente um disco conceitual com fio condutor em uma dualidade explorada que pode ser interpretada sob várias perspectivas, como, por exemplo, uma meditação sobre o bem e o mal ou o um conflito entre o humano e o divino. Musicalmente essa luta é expressa em contrastes marcantes por meio de momentos de serenidade celestial que se alternam com passagens mais intensas, sombrias e até mesmo quase caóticas.

O álbum é dividido em duas partes compostas por várias seções ou movimentos, mas essa divisão tem pouca relevância no contexto geral. Como em qualquer álbum conceitual, a verdadeira essência de Heaven and Hell está na narrativa completa e na jornada sonora que se desdobra do início ao fim. A separação em duas partes, na verdade é apenas uma consequência das limitações físicas do formato de vinil da época, já que o álbum foi concebido como uma obra contínua e projetada para ser apreciada integralmente e sem interrupções. Essa abordagem reforça a visão artística de Vangelis que prioriza a coesão e a experiência imersiva sobre qualquer fragmentação formal.

Heaven and Hell Parte 1 inicia com "Baccanale", que começa suavemente com teclados serenos. Porém, em um piscar de olhos a música se transforma em uma explosão de complexidade com teclados intensos e um coro imponente que invade o ouvinte como uma batalha sonora. A dinâmica entre a calma inicial e a energia avassaladora que se segue cria uma sensação quase de guerra interna, como se estivéssemos assistindo a um confronto entre o bem e o mal. É uma introdução impressionante que capta a grandiosidade e a tensão que marcarão todo o álbum.

"Symphony to the Powers B" é o segundo movimento e a seção central da primeira metade do disco. A peça começa com uma introdução de piano, mas logo é invadida por coros vigorosos cantados em um latim imponente e que conferem uma sensação de solenidade, quase como uma cerimônia religiosa. À medida que a música avança, um contraponto fascinante emerge entre os coros masculinos e femininos, evocando um confronto épico entre forças angelicais e demoníacas, sendo tudo sustentado por um piano grandioso e orquestral. A influência de Carmina Burana é evidente, com sua dramaticidade e riqueza sonora. Por vários minutos o piano e o coro se entrelaçam de maneira envolvente e criam uma tensão crescente e imersiva, que envolve o ouvinte até o auge do movimento.

"Movimento 3" começa de forma quase ininterrupta com uma seção melódica encantadora que une piano, sintetizadores e coro. Essa peça se tornou famosa por ser o tema de abertura do programa Cosmos, apresentado por Carl Sagan em 1980. Sua beleza transcende a simples descrição, criando uma atmosfera de serenidade e mistério, onde cada nota parece evocar a vastidão do universo. É uma composição extraordinariamente tocante, mas sendo ao mesmo tempo grandiosa e íntima.

A Parte 1 do álbum culmina com "So Long Ago, So Clear", uma música que serve como um alívio suave após a intensidade e agressividade instrumental da seção anterior. Os vocais de Jon Anderson, que faz uma participação especial, oferecem uma doçura e tranquilidade inesperadas ao criar uma atmosfera relaxante e serena. Sua voz flui com delicadeza e proporciona um contraste perfeito que encerra esta primeira parte de maneira acolhedora e introspectiva.

A Parte 2  mergulha ainda mais fundo no místico, começando com "Intestinal Bat", uma peça marcada por uma coleção de sons estranhos, campainhas e harpas que criam uma atmosfera inquietante e sobrenatural. A introdução é misteriosa e até assustadora, como se nos conduzissem por um caminho obscuro e desconhecido. O clímax dessa jornada chega com um violino distorcido que rompe com a tensão crescente de maneira abrupta, deixando o ouvinte com uma sensação de desconcerto e fascínio.

"Needles and Bones" apresenta uma excelente seção rítmica, mas mantendo o ar de mistério que permeia o álbum. A influência grega é clara, com acordes, teclas e sinos que evocam uma sensação de ritual e ancestralidade. A música constrói uma tensão crescente e serve como uma preparação perfeita para a passagem mais chocante do disco e que se aproxima com um impacto inesperado. A mistura de elementos tradicionais e eletrônicos cria um ambiente único, onde o antigo e o moderno se entrelaçam de maneira inquietante.

"12 O'Clock" começa com um coro semi-gregoriano envolto por uma percussão sutil e quase imperceptível, enquanto sons fantasmagóricos cercam o ouvinte criando uma calma tensa e inquietante. Essa tranquilidade é interrompida por explosões musicais caóticas, súbitas e curtas que desaparecem tão rapidamente quanto surgem, abrindo espaço para o coro místico retornar. No entanto, dessa vez ele prepara o terreno para a entrada de Vana Varoutis, cuja voz imaculada soa como a de um anjo. A intensidade de sua interpretação é tão pura e sublime que pode invocar algumas lágrimas. Sua voz, crescente e envolvente vai se expandindo a cada minuto até se unir a um coro masculino que gradualmente cobre sua melodia e a faz desaparecer de forma progressiva. A combinação é arrebatadora e cria uma sensação de profundidade emocional e uma atmosfera verdadeiramente arrepiante.

Quando o ouvinte acredita que a calmaria chegou, "Aries" aparece com força total, oferecendo uma seção explosiva acompanhada por uma orquestra completa, cuja execução como em todo o álbum é assinada por Vangelis. Esta passagem é esplêndida e poderosa, soando como uma verdadeira catarse musical que marca o ápice da intensidade. No entanto, logo após essa explosão, a música se suaviza e dar lugar a "A Way", uma seção melódica serena e delicada que serve como um fechamento de disco que é tranquilo e agradável. O contraste entre a energia avassaladora do início e a suavidade do final cria um efeito emocional profundo, encerrando o álbum de forma harmoniosa e contemplativa, como se estivesse completando um ciclo de tensão e liberação.

No geral, Heaven and Hell é um disco em que catalogá-lo em um único gênero ou vertente é um desafio, pois o álbum transita com maestria entre diversas influências. Às vezes ele soa sinfônico, outras vezes atmosférico com um toque marcante da música grega. No entanto, independentemente de qualquer classificação, é inegável de que se trata de uma obra 100% progressiva. Uma experiência sonora estranha e bela de um nível que nunca mais foi atingido por Vangelis, embora o compositor, claro, tenha outros trabalhos excelentes em sua carreira. Heaven and Hell é uma peça extremamente única e bem desenvolvida, além de musicalmente rica. Uma verdadeira obra-prima que se firma como essencial em qualquer coleção de música progressiva.

NOTA: 10/10

Gênero: Música Ambiente, Música Eletrônica, Progressivo Eletrônico

Faixas:

1. Heaven and Hell, Part One - (17:00):
a) Bacchanale - 4:40
b) Symphony to the Powers B (Movements 1 and 2) - 8:18
c) Movement 3 - 4:03
2. So Long Ago, So Clear - 4:58 
3. Heaven and Hell, Part Two (21:16):
a) Intestinal Bat - 3:18
b) Needles and Bones - 3:22
c) 12 O'Clock - 8:48
d) Aries - 2:05
e) A Way - 3:45

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Elizabeth A. Carver - The Cart Before The Horse (2025)

Elizabeth A. Carver é uma cantora e compositora americana que ainda está dando os seus primeiros passos na música, tendo lançado seu disco de estreia no dia 2 de janeiro de 2025, intitulado, The Cart Before The Horse, um disco de avant-folk, ou seja, um trabalho que mistura as raízes do folk tradicional com uma abordagem mais experimental e muitas vezes até difícil de ser assimilado por ouvidos que não são familiarizados com o gênero.

Mas vale destacar que a mente de Elizabeth não está sozinha nesse projeto. O álbum também conta com a colaboração essencial de Alexander Gregory Kent, que é quem assina os vocais e contribui significativamente para a profundidade emocional e artística do álbum. Os dois trabalham de uma maneira muito harmoniosa, enquanto demostram uma sinergia criativa marcada por uma forte honestidade artística.

"Big Silver Round Thing" é uma peça que abraça a ideia de criar uma experiência sonora que se desvia do convencional e exige uma imersão mais profunda do ouvinte. Por meio de um andamento lento e quase hipnótico a música transforma cada som em uma camada de textura que se sobrepõe à anterior, mas sem pressa e sem pressões externas. A instrumentação suave que se desenrola de maneira quase etérea transporta quem escuta para um estado de introspecção, enquanto o convida a se perder em seus próprios pensamentos. Liricamente, entrega a ideia de alguém que está preso entre memórias dolorosas e um desejo de se reconstruir. A dualidade entre violência e ternura é o conceito central, representando uma luta entre destruição e redenção.

"Wishing", diferentemente da anterior, traz uma energia mais ritmada que conecta o ouvinte a um movimento contínuo e fluido. O equilíbrio entre os elementos do folk tradicional e as nuances experimentais é o que a torna uma faixa particularmente encantadora. Ela transmite a sensação de uma viagem sonora onde o passado e o presente se encontram e se complementam, criando uma experiência auditiva profunda e rica, além de emocionalmente ressonante. É uma peça que não se limita a seguir uma fórmula. A letra em si, também segue uma ambiguidade emocional, mas agora, na perspectiva de alguém que parece buscar, mas ao mesmo tempo rejeitar o desejo e a esperança, como se houvesse um desgaste profundo na luta constante entre o ideal e o real.

"Portraits of Sections of Whale Body" é uma peça que leva o ouvinte a um território puramente experimental, se distanciando completamente de convenções narrativas de uma forma de música mais tradicional. É aquele tipo de som que exige do ouvinte uma grande disposição para mergulhar em territórios desconhecidos, mas que em troca também oferece uma experiência rica e evocativa. Imaginem que é como observar um quadro impressionista, onde a princípio nada parece fazer sentido, porém, após entendê-lo, uma imagem clara pode emergir. Sua letra não é cantada, mas uma espécie de súplica dramática que sugere uma reflexão sobre a natureza da existência, medos internos e a busca por algo maior.

"I Commit You to God" é daquelas músicas em que sua simplicidade musical encontra uma enorme força emocional. Com o foco central principalmente no piano, cada nota parece ter sido escolhida com um cuidado enorme por quem não quer impressionar com complexidade, mas simplesmente transmitir uma sinceridade crua e uma melancolia que ressoa profundamente. A melodia é lenta e contemplativa, onde as pausas entre as frases musicais são tão significativas quanto as notas tocadas, fazendo assim, que o silêncio também se torne uma parte essencial da inquietude minimalista de uma narrativa que é ao mesmo tempo um lamento e uma celebração capaz de mostrar como a beleza pode ser encontrada nos lugares mais inesperados. 

“Horse in Retrospect” é a faixa que encerra o álbum, trazendo uma mistura de elementos folk e sons ambientes. O violão é executado de uma maneira sofisticada e cheia de camadas. Enquanto isso, a sonoridade ambiente ronda por toda a faixa e adiciona uma dimensão etérea que amplia a paisagem sonora. O equilíbrio entre o folk tradicional e os elementos experimentais são notáveis. Apesar de inicialmente parecer que tudo vai soar de maneira introspectiva, quase até mesmo íntima, ao longo de sua progressão ela se abre e torna-se expansiva e até mesmo transcendental ao entregar para o ouvinte uma espécie de sentimento de despedida, enquanto liricamente pode ser vista até como uma meditação, tanto sobre a dor quanto sobre a beleza de se deixar ir e seguir o fluxo inevitável da existência.

Não vou enganar ninguém: apesar de eu ter gostado de The Cart Before The Horse, não se trata de um disco que se indica para qualquer pessoa. Seu experimentalismo, embora fascinante, nem sempre pode soar musical ou acessível para todos os gostos. Este é um álbum que exige um ouvinte disposto a se entregar à experiência sem expectativas rígidas e aberto a interpretações subjetivas. 

Também não acho que seja um disco para ouvir a qualquer dia ou em qualquer hora. Ele parece reservado para ocasiões específicas — talvez um fim de tarde introspectivo, uma noite silenciosa ou um momento em que você esteja preparado para mergulhar em sua carga emocional densa. Suas paisagens sonoras, muitas vezes soturnas e melancólicas, podem ser um peso emocional em dias mais vulneráveis, dias onde tudo que precisamos é de algo leve e reconfortante.

Resumindo, The Cart Before The Horse é um disco que em seus melhores momentos tem a capacidade de atingir uma enorme profundidade emocional e cria um universo sonoro único, desde que você esteja no estado de espírito certo para explorá-lo. É um álbum que recompensa o ouvinte disposto a encarar sua natureza desafiadora, mas queao mesmo tempo pode exigir mais do que alguns estarão dispostos a dar.

NOTA: 8.1/10

Gênero: Avant Folk

Faixas: 

1. Big Silver Round Thing - 10:22
2. Wishing - 4:12
3. Portraits of Sections of Whale Body - 7:54
4. I Commit You to God - 6:24
5. Horse In Retrospect - 7:07

Onde Ouvir:  Plataformas de Streaming, Bandcamp e Youtube

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